Joaquim Henriques, médico veterinário no Centre Hospitalier Vétérinaire Frégis, em Paris, França
Qual a sua área de especialidade e porque escolheu essa área?
Embora não sendo portador de um título de especialista, trabalhei quase toda a minha vida profissional no sentido de desenvolver profundos conhecimentos na área da oncologia veterinária. Este investimento deu os seus frutos ao ver as minhas competências reconhecidas, pelos tutores e sobretudo pelos colegas nacionais e internacionais, nas áreas médicas, cirúrgicas e na área da investigação. A oncologia fascina-me por ser uma das áreas da medicina que está sempre em desenvolvimento. É um desafio constante, cada doente, cada caso. É, também, a arte de tentar compreender o que leva as células do organismo a revoltarem-se contra ele, para o invadir e destruir, numa tentativa de atingir a imortalidade. Todos os dias surgem novos conhecimentos, sejam nas áreas da oncobiologia, do diagnóstico ou da terapêutica. Embora a oncologia seja uma disciplina de interface, que articula com todas as outras especialidades, ainda existem muitos conhecimentos por adquirir e outros por validar. Que área interessante! Outra razão muito importante, do meu amor por esta disciplina médica, é a possibilidade de estabelecer laços de cumplicidade, com os tutores e animais, numa área onde os atos médicos state-of-art andam de mãos dadas com o afeto e compaixão.
Como surgiu a oportunidade de ir trabalhar para o estrangeiro? Onde trabalha neste momento?
Fui convidado para implementar e desenvolver um serviço de oncologia no Centre Hospitalier Vétérinaire Frégis (CHV Frégis). Procuravam alguém com o meu perfil e experiência. Após alguma reflexão, decidi aceitar o desafio. Mantenho ainda uma ligação ao grupo Onevet e ao Onevet − Hospital Veterinário Berna, como consultor na área da oncologia. O CHV Frégis foi o primeiro hospital veterinário em França, tendo nascido em 1836 em Montmartre, Paris. Na sua história, teve entre os seus colaboradores Louis Pasteur, que lá desenvolveu parte dos seus estudos sobre a raiva. O CHV Frégis é o hospital veterinário com mais especialistas em França e encontra-se numa fase de expansão, quer do seu corpo clínico, quer das suas infraestruturas, através do desenvolvimento de novos serviços. É ainda um centro de formação de especialistas em diversas áreas, através de programas de residência oficias de vários colégios europeus.
O que o fez tomar a decisão de ir para fora de Portugal?
Após vários anos como diretor clínico de um centro de referência em Oncologia, Onevet-Hospital Veterinário Berna, em Lisboa, esta proposta fez-me refletir sobre um novo capítulo de forte crescimento profissional e pessoal. A possibilidade de poder trabalhar numa das maiores estruturas de referência da Europa, aumentando, consolidando e partilhando os meus conhecimentos e troca de experiencias e, ao mesmo tempo, viver numa cidade como Paris, acabaram por me convencer a deixar Portugal.
Quais as diferenças que encontra entre os métodos de trabalho nos dois países? Ou seja, como é um dia de trabalho normal? O que faz?
Existem poucas diferenças, mas significativas. Aqui o trabalho é estruturado em função da referência. Recebemos doentes de toda a França, Bélgica, Suíça e Ilhas Francesas ultramarinas. Tudo está planeado para que possamos dar resposta no mesmo dia às solicitações. Por exemplo, os tutores que tragam um animal para consulta de oncologia, têm a possibilidade de realizar todos os exames necessários (TAC, Ressonância, ecografia, citologias, endoscopias, etc) no mesmo dia, e quando o animal sai ao final do dia os relatórios de consulta e exames já estão prontos, com o devido plano terapêutico. A distribuição dos horários também é diferente: trabalhamos entre três e quatro dias por semana. O que é normal em França a este nível de diferenciação. Nestes três a quatro dias, o trabalho é repartido entre a atividade clínica e a formação. Como existem ainda muitos serviços de especialidade, é muito fácil trocar impressões e discutir sobre os casos clínicos, muito rapidamente, optimizado o diagnostico e terapêutica.
Os meus dias são distribuídos entre a organização e direção do serviço de oncologia, realização de consultas, orientação dos tratamentos dos pacientes em ambulatório ou hospitalizados, rondas clínicas de manhã e à tarde com a equipa de oncologia, comunicação com os clientes e veterinários referenciadores e formação dos residentes, internos e assistentes de outros serviços, quando estão na rotação de oncologia.
Desenvolvo ainda atividades de investigação com entidades parceiras, sessões específicas de formação como Journal clubs ou Sessões clínicas interdisciplinares, sejam dentro do serviço de oncologia ou com os outros serviços do hospital. Coordeno ainda a interface de referenciação com a nossa unidade de radioterapia em Lille.
O facto de dispor de uma equipa com assistentes, internos e auxiliares veterinários que me ajudam torna todos estes processos bastante fluídos e mais fáceis de realizar.
Como é viver fora de Portugal? Conseguiu adaptar-se bem?
Deixei Portugal numa altura muito particular: fevereiro, o pico de mais uma vaga de covid-19 por toda a Europa. Paris esteve sobre um confinamento estrito durante vários meses e isso impediu a realização de atividades sociais ou desportivas para relaxar e descontrair. A vida social esteve bastante condicionada.
Mesmo para um lisboeta, nascido e criado, Paris é uma cidade enorme. A Paris do turismo, de Montmartre e do Louvre é só uma pequeníssima parte desta cidade. Tenho a sorte de habitar no centro de Paris e já cá ter amigos e dominar minimamente o francês. Isto facilitou muito a minha integração. O acolhimento por toda a equipa do CHV Frégis foi muito boa, assim como da comunidade de oncologistas franceses. No geral, a adaptação profissional e pessoal foi fácil e rápida.
Como é que está a situação de pandemia de covid-19 neste momento e como é que isso afeta o seu trabalho?
Atualmente, e após uma crise epidemiológica grave, a França e, particularmente Paris, começam a desconfinar. Uma importante parte da população está vacinada (inclusive os veterinários, pois são considerados profissionais de saúde) e o ambiente de medo e confinamento esvanecem-se. Os museus, cinemas e especialmente as esplanadas reabriram e a vida parisiense retoma o seu caminho. No trabalho não sinto que a situação seja diferente da que já vivia em Portugal. O sentimento geral é que estamos todos fartos de máscaras e a precisar de abraços!
“Gostaria de (…) oferecer um serviço diferente dos já existentes [em Portugal] na ‘perspetiva da referenciação em oncologia’. Um projeto onde irei aplicar também toda a experiência, contactos e oportunidades que levo daqui, não só a nível do CHV Frégis, mas também os conhecimentos que recebo ao estar a trabalhar no maior grupo europeu de prestadores de serviços veterinários − IVC Evidensia − e que me expõe a uma realidade muito interessante e enriquecedora.”
Do que mais tem saudades de Portugal?
Da família, da luz de Lisboa, dos amigos e da boa gente portuguesa. Da praia e das caipirinhas. Confesso saudades pelos antigos colegas de equipa, sobretudo os que há muitos anos me acompanhavam.
Quais os seus planos para o futuro?
Continuar a adquirir e fortalecer conhecimentos e contactos, assim como, desenvolver competências na minha área. Regressar a Portugal num futuro próximo. E, obviamente, aproveitar a vida em Paris.
Equaciona voltar a Portugal?
Sim, como referi na resposta anterior, esse momento vai chegar.
Se sim qual o trabalho/projeto gostaria de desenvolver?
Será obviamente um projeto na área da oncologia. Gostaria de trazer e implementar algumas inovações diagnósticas e terapêuticas que ainda não existem em Portugal, assim como oferecer um serviço diferente dos já existentes na “perspetiva da referenciação em oncologia”. Um projeto onde irei aplicar também toda a experiência, contactos e oportunidades que levo daqui, não só a nível do CHV Frégis, mas também os conhecimentos que recebo ao estar a trabalhar no maior grupo europeu de prestadores de serviços veterinários − IVC Evidensia − e que me expõe a uma realidade muito interessante e enriquecedora. Verei as propostas que poderão também vir a existir, da parte da comunidade veterinária/académica portuguesa, uma vez que, também a realidade profissional em Portugal está a mudar e colaborações muito interessantes poderão ser vislumbradas nesse futuro. Gostaria muito de voltar à Academia, para poder partilhar conhecimento e criar uma linha de investigação multidisciplinar em oncologia.
Que conselhos dá aos recém-licenciados em medicina veterinária que estão a ter dificuldades em ingressar no mercado de trabalho?
Aconselho a não desistirem dos seus sonhos. A construção da nossa vida profissional é feita através da realização de grandes esforços e no início da carreira é o momento ideal para os realizar. O verdadeiro esforço e dedicação são sempre reconhecidos! E, em Portugal, também se consegue fazer uma medicina veterinária de excelência!
“A veterinária caminha inexoravelmente para uma entrada dos grandes grupos financeiros em todo o mundo. Portugal não vai ser a exceção. Isso vai mudar a maneira como fazemos medicina veterinária.”
Como vê o estado atual da medicina veterinária em Portugal e no mundo?
Tenho muito orgulho na medicina veterinária portuguesa. A medicina veterinária em Portugal, no geral, não é muito diferente do que vejo aqui ou do que experienciei, por exemplo, quando estive no Reino Unido. A maioria dos centros são de pequena a média dimensão e depois existem os hospitais privados ou universitários, com grande capacidade a nível de know how e infraestruturas.
A veterinária caminha inexoravelmente para uma entrada dos grandes grupos financeiros em todo o mundo. Portugal não vai ser a exceção. Isso vai mudar a maneira como fazemos medicina veterinária. Provavelmente através de uma maior capacidade de investimento, permitindo a implementação e desenvolvimento de novos serviços, o regresso de muitos especialistas portugueses que estão no estrangeiro e, automaticamente, contribuir para o desenvolvimento da referenciação.
*Artigo publicado originalmente na edição n.º 150 da revista VETERINÁRIA ATUAL, de junho de 2021.