Vómitos, diarreia, perda de apetite, queixas digestivas e intolerância a alguns alimentos são sinais clínicos que motivam a procura de ajuda regular em medicina veterinária. Um adequado diagnóstico pode orientar um melhor tratamento para problemas gastrointestinais sendo a mudança alimentar a chave para a eficácia em alguns casos. Situações benignas ou mais complexas devem ser acompanhadas e avaliadas criteriosamente.
É algo mesmo muito recorrente na prática clínica. Praticamente todos os dias, Doroteia Bota, médica veterinária especialista em medicina interna de pequenos animais (Dip. ECVIM-CA) a exercer atualmente no Anicura Restelo Hospital Veterinário, recebe um animal com queixas de vómito e/ou diarreia ou perda de apetite por origem digestiva. “Nos cachorros, problemas digestivos secundariamente a uma intolerância / alergia alimentar ou parasitose intestinal são frequentes. Os jovens adultos podem também ter intolerância / alergia alimentar ou enteropatia com resposta aos imunossupressores”, explica. Também algumas raças são predispostas “às enteropatias com perda de proteína que podem nem sequer dar sinais digestivos (vómito, diarreia) e é importante não a excluir pela ausência dos sinais clássicos. Por fim, os tumores digestivos afetam os animais adultos de meia-idade – geriátricos”, sublinha.
No caso da Vilavet, situada em Vila Real de Santo António, os problemas mais comuns na área da gastroenterologia “correspondem a maus maneios alimentares, muitas vezes por escolhas erradas por parte dos donos com dietas inadequadas ou de baixa qualidade”, explica o diretor clínico Ivo Lima da Silva. Noutras ocasiões, são os próprios animais que à revelia acabam por comer alimentos estragados, como acontece quando fazem “ataques” aos caixotes do lixo. “Estas situações, constituem quadros clínicos de indiscrição alimentar, que raramente são graves, mas que são bastante frequentes”, salienta o também cofundador da clínica.
São vários os sinais clínicos de alerta. E, ao contrário de outros que costumam ser mais subtis, não há um protelar da situação por parte dos tutores que não demoram a procurar ajuda especializada. “Os animais podem apresentar perda de apetite/apetite caprichoso, maior ou menor perda de peso, vómitos e/ou diarreia que podem ser cíclicos ou diários. Há animais que têm distensão abdominal pela presença de líquido livre”, afirma Doroteia Bota. Existem ainda outros casos de animais que comem muita erva, engolem em seco, “põem-se numa posição ‘atípica’, a qual se intitula de ‘praying position’, por terem dor abdominal. Há animais que têm borborigmos ou flatulência”, sublinha.
No âmbito da medicina interna, a hipersensibilidade gástrica ou os quadros de gastrite crónica são muito frequentes na prática clínica de Rodolfo Oliveira Leal, médico veterinário internista e responsável pelo serviço de Medicina Interna do Hospital Escolar Veterinário da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa (FMV-ULisboa). Sendo a sua área de atuação sobretudo a endocrinologia e a gastroenterologia, o também professor auxiliar convidado na mesma faculdade recebe quadros de gastrites crónicas com frequência. “Os sinais mais frequentes para doença gástrica são sobretudo o clássico vómito e, muitas vezes, sinais indiretos de refluxo gastroesofágico”, salienta. É importante distinguir entre vómito e regurgitação. “Classicamente, no caso da regurgitação, orientamos mais para doenças do esófago enquanto os vómitos direcionam maioritariamente para doenças gastrointestinais. Claro que não é sempre linear, ou seja, um animal com gastrite pode em casos raros regurgitar e um animal com doença gastroesofágica pode vomitar.”
A maior parte dos casos que chegam à Vilavet caracterizam-se por inapetência / anorexia, que pode ser acompanhada de vómitos e/ou diarreia. “Muitas vezes, existe dor abdominal ou alteração na forma, volume e frequência das dejeções. Os vómitos podem ser também sinal de alterações gástricas, mas não só, pelo que uma boa anamnese com um exame físico completo é fundamental nestas situações”, afirma Ivo Lima da Silva. É importante perceber que um quadro de vómitos e/ou diarreia pode(m) ser uma situação benigna ou muito grave, pelo que o médico veterinário deve estar atento nesta fase para perceber quais os melhores passos a dar em seguida.
As causas do vómito podem ser variadas. Rodolfo Oliveira Leal explica que podem “ser do foro digestivo e é aí que entra a gastrite responsiva à dieta e gastrite por doença imuno-mediada/inflamatória. Podemos considerar também as causas infeciosas ainda que sejam mais raras em cães e o seu valor clínico é geralmente dúbio”. Nota ainda para os tumores gástricos que podem ser um diferencial deste sinal clínico. E, por fim, existem causas extra digestivas destacando a doença do foro hepatobiliar, pancreatite, doenças endócrinas, como a doença de Adisson, no cão, e hipertiroidismo, no caso do gato, doenças do sistema nervoso, entre outras.
Como diagnosticar?
“Quando nos deparamos com animais com este tipo de sinais clínicos, temos de fazer um work up geral, análises de sangue, urina, ecografia abdominal, análise de fezes… e se suspeitamos então de uma doença digestiva na origem dos sinais, a mudança alimentar é o próximo passo”, refere Doroteia Bota. Se a mesma for eficaz a resolver os sinais, chega-se ao diagnóstico. Se não for, a equipa tem provavelmente um candidato à realização de biopsia digestiva.
Na opinião de Ivo Lima da Silva, o diagnóstico pode ser feito apenas por exame clínico ou pode ser necessário realizar exames complementares de diagnóstico. “Situações que não apresentam melhoras clínicas em 24 horas devem ser criteriosamente avaliadas com exames de imagiologia e analítica sérica. Os casos mais complicados podem exigir exames específicos como biopsias, obtidas cirurgicamente ou por via endoscópica.”
Uma das abordagens que Rodolfo Oliveira Leal considera essencial no caso do vómito crónico é a transição alimentar. “Se realizarmos uma endoscopia de forma direta, estamos a saltar um passo básico que é mudar a dieta. Começamos por excluir as causas extra-digestivas, com análises sanguíneas até chegarmos ao momento em que percebemos que há uma suspeita de que o animal poderá ter uma inflamação gástrica. Depois, podemos complementar com uma ecografia abdominal para avaliar se o animal tem um espessamento digestivo”, defende. De nada adiantará realizar uma endoscopia ou biopsias ao estômago em casos onde exista a probabilidade de haver uma inflamação secundária sem tentar modificar a dieta primeiro.
“A duração de um treino alimentar é extremamente discutível. As duas primeiras semanas poderão ser precoces para tirar conclusões, mas já é possível começarmos a observar alguma alteração. Paralelamente, se tivermos uma suspeita de refluxo esofágico, existem sinais de alerta que o animal pode dar: mastigar no vazio, lamber os lábios persistentemente e desconforto depois de comer (sobretudo à noite)”, explica o professor da FMV-ULisboa. A modificação alimentar é simples pois consiste em iniciar a nova dieta (preferencialmente hidrolisada), de forma metódica e progressiva.
A colega Doroteia Bota partilha desta opinião e alerta que no caso “de animais que tenham problemas digestivos, antes de realizarem exames complementares mais invasivos como é o caso da biopsia digestiva, devem ser investigados metodicamente e submetidos a uma mudança alimentar com uma nova fonte de proteína ou uma proteína hidrolisada”. E justifica: “Uma enteropatia com resposta à mudança do alimento deve ser excluída antes de se avançar para a pesquisa de uma enteropatia com resposta ao imunossupressor”. A médica veterinária arrisca percentagens para comprovar a sua opinião e defende que mais de 50% dos animais que recebe em consulta de gastroenterologia ficam bem com uma mudança alimentar para uma alimentação de proteína hidrolizada ou uma dieta caseira feita por um colega seu que faz nutrição animal.
Doroteia Bota defende que no caso “de animais que tenham problemas digestivos, antes de realizarem exames complementares mais invasivos como é o caso da biopsia digestiva, devem ser investigados metodicamente e submetidos a uma mudança alimentar com uma nova fonte de proteína ou uma proteína hidrolisada”
“Não sou adepta de outras alimentações da moda, mas claro que cada tutor é livre de dar o que quiser ao seu animal de companhia”, defende, acrescentando que aconselha a dieta caseira em duas situações: quando os animais recusam as dietas hidrolizadas ou quando o tutor faz questão de cozinhar para o seu animal. “Igualmente, na enteropatia com resposta ao imunossupressor, a dieta nova faz parte do tratamento da doença”, adianta.
Diagnosticar precocemente é a chave para o sucesso. “Uma situação aguda pode levar a desidratação severa, que pode implicar fluidoterapia e uma recuperação mais lenta e insidiosa”, explica Ivo Lima da Silva. Há que ter em consideração o que podem representar os casos mais complexos. “Uma obstrução do trânsito intestinal pode conduzir a lesões graves no intestino se não for resolvida rapidamente. Muitas patologias, como pancreatites, neoplasias, insuficiência renal ou hepática podem, numa ou noutra fase da sua evolução, apresentar quadros de vómitos e/ou diarreia”, alerta o diretor clínico da Vilavet.
Depois de efetuado o diagnóstico, a abordagem terapêutica vai depender de cada caso. “Quase todas as doenças gastrointestinais passam por controlo alimentar, sejam agudas ou crónicas. Até porque, como já referi, muitas delas estão associadas a indiscrições alimentares. Oferecer uma dieta balanceada e adequada promove uma mais rápida recuperação na patologia aguda e previne recidivas na patologia crónica”, afirma Ivo Lima da Silva. O papel da alimentação é importantíssimo em todo este processo. “A alergia alimentar, assim como as patologias auto-imunes com manifestação gastroentérica beneficiam amplamente de uma dieta terapêutica específica”, defende. Além do jejum e de dietas de elevada digestibilidade, o médico veterinário considera que os antieméticos e prebióticos desempenham um bom papel terapêutico.
“Oferecer uma dieta balanceada e adequada promove uma mais rápida recuperação na patologia aguda e previne recidivas na patologia crónica” – Ivo Lima da Silva, Vilavet
É preciso ser metódico e estar atento aos sinais. “Se as queixas não forem tratadas a tempo contribui-se para que a saúde gastrointestinal fique perturbada, há um défice de ganho de peso e esta situação acaba por ser nefasta a longo prazo para o animal”, explica Rodolfo Oliveira Leal.
Algumas mudanças alimentares ficam para o futuro. Ou seja, reconhecendo que pode haver algum tipo de intolerância alimentar, muitos tutores acabam por manter a nova dieta continuamente pois passaram por um desafio enorme ao terem o animal a vomitar recorrentemente. “Noutros casos, podemos tentar fazer alguns trials alimentares individuais para perceber o que pode despoletar – ou não – o vómito. Muitos donos mantêm a dieta hipoalergénica durante grandes períodos de tempo”, explica o médico internista da FMV-ULisboa.
Como mensagem final, Rodolfo Oliveira Leal alerta para o facto de até à data “a interpretação de resultados de testes serológicos para despiste de alergias alimentares ser discutível e raramente ser útil ao diagnóstico destas doenças. A sua utilidade é muito baixa, ou seja, estes testes não são clinicamente relevantes na abordagem de hipersensibilidade digestiva”, conclui.
Rodolfo Oliveira Leal alerta para o facto de até à data “a interpretação de resultados de testes serológicos para despiste de alergias alimentares ser discutível e raramente útil ao diagnóstico destas doenças. A sua utilidade é muito baixa, ou seja, estes testes não são clinicamente relevantes na abordagem de hipersensibilidade digestiva”, conclui.