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Médicos Veterinários

FMV-UL inicia primeira residência alternativa em bem-estar animal em Portugal

A Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa (FMV-UL) deu início, em abril deste ano, a uma residência alternativa em bem-estar animal. O programa foi recentemente aprovado pelo Colégio Europeu em Bem-Estar Animal e Medicina do Comportamento (ECAWBM) e pretende mobilizar a classe veterinária para interceder nesta área. Para já a residência conta apenas com um candidato, um primeiro passo para que, no futuro, seja replicada para um modelo que possa ser extensível a outros residentes.

Numa época em que se delineiam planos de ação para o bem-estar animal um pouco por todo o mundo, reconhecendo os animais como seres conscientes, o conceito de saúde atinge outro patamar e mais do que não causar experiências negativas, passa pelo trabalho proativo de promover experiências positivas para os animais. Estas indicações estão contempladas na carta de bem-estar animal criada pelo Animal Wellness & Welfare Committee (AWWC) da World Small Animal Veterinary Association (WSAVA), que recorda o papel dos médicos veterinários nesta área.

 

Seguindo a mesma linha de pensamento, e também motivada por uma multitude de acontecimentos, alguns deles mediáticos, como os incêndios dos canis na Serra da Agrela, a montaria na Herdade da Torre Bela, o debate social sobre o transporte de animais de produção e as eutanásias nos canis municipais, a Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa (FMV-UL) deu início, em abril de 2021, a uma residência alternativa em bem-estar (ciência, ética e lei). O programa de residência de três anos de duração foi recentemente aprovado pelo Colégio Europeu em Bem-Estar Animal e Medicina do Comportamento (ECAWBM) e é coordenado pelo investigador do Laboratório de Comportamento e Bem-Estar Animal do CIISA e especialista europeu em bem-estar animal, Manuel Sant’Ana, com a coorientação do vice-presidente do Conselho Disciplinar do Royal Colege of Veterinary Surgeons (RCVS) no Reino Unido, Martin Whiting.

De entre oito candidatos, o eleito − Alexandre Azevedo − torna-se assim o primeiro médico veterinário português a frequentar um programa europeu de residência em Bem-Estar Animal.

“Precisamos de mais médicos veterinários treinados em bem-estar”
 

A residência consiste num treino personalizado de um candidato que pretende alcançar um título de especialista em bem-estar animal nas suas três vertentes: ciência, ética e lei. Este é um programa alternativo, um primeiro passo para que, no futuro, seja possível implementar uma residência standard, com a aceitação de mais candidatos.

O coordenador, Manuel Sant’Ana, refere que as questões do bem-estar animal “têm ganhado uma grande proeminência social”, mas que “os médicos veterinários não estão representados ou não são chamados a intervir”, realçando a necessidade de mobilizar a classe veterinária a interceder nestes assuntos. “Dentro das minhas possibilidades, fui tendo voz ativa − outros colegas também −, mas falta uma massa crítica para lidar com estas questões de forma estruturada. Precisamos de mais médicos veterinários treinados em bem-estar, que tenham conhecimento, vontade, know-how, postura e tempo para que possam influenciar a sociedade e os decisores políticos”, afirma.

 

“Precisamos de mais médicos veterinários treinados em bem-estar, que tenham conhecimento, vontade, know-how, postura e tempo para que possam influenciar a sociedade e os decisores políticos” – Manuel Sant’Ana, coordenador da residência

 

Manuel Sant’Ana é também especialista do Colégio Europeu desde a sua origem, em 2015. Após o seu regresso a Portugal, em 2016, depois de um período no estrangeiro, tem se dedicado à área do bem-estar animal. Considera que “há falta de colegas treinados nesta área e aqueles que têm treino, por vezes, não têm tempo para se dedicar a ela a tempo inteiro”. Em dezembro do ano passado auscultou alguns membros da classe para perceber se teriam interesse em frequentar a residência e, pelo facto de esta não ser remunerada, constatou algumas reticências. “Essa é uma das grandes dificuldades de fazer uma residência em bem-estar”, atira. “Se estivermos a falar numa residência em oftalmologia, ou cirurgia, por exemplo, haverá instituições que podem receber o residente e gerar rendimentos para pagar o programa, porque há uma vertente clínica. Na área do bem-estar não há propriamente uma vertente clínica, não há um cliente a pagar por um parecer ou por uma avaliação. Esta é uma área multidisciplinar e tem sido difícil encontrar estabelecimentos que possam receber residências pagas, com algum tipo de financiamento”, revela.

Foi com esta limitação que o médico veterinário Alexandre Azevedo aceitou realizar a residência. Contudo, o candidato a especialista desvaloriza a restrição, realçando que esta é uma oportunidade a não desperdiçar, pela escassez de programas na área do bem-estar animal em Portugal. “Habitualmente, não temos estas possibilidades quando terminamos os cursos, ou vamos para o estrangeiro e temos condições para isso ou então está completamente fora do nosso alcance. E o facto de termos especialistas que já fizeram este percurso, que voltam a Portugal, e nos conseguem oferecer estas oportunidades dentro do nosso País… Já uma evolução muito grande”, refere.

Ciência, ética e lei

Mas, na prática, como é que a residência se reflete no dia-a-dia do profissional que se vai especializar? Manuel Sant’Ana responde: “O bem-estar está nas decisões diárias de todos os médicos veterinários. Todas as decisões têm consequências para as pessoas, para os animais e para o médico veterinário”. Na clínica de animais de companhia, exemplifica Alexandre Azevedo, “isto reflete-se em coisas simples como preencher o campo da raça no boletim sanitário de um animal que tem características morfológicas de animal perigoso”. Neste quesito o médio veterinário garante que a situação é muito mais complexa do que possamos imaginar. “Se lermos a legislação com muito cuidado não é fácil perceber se a responsabilidade é do tutor, que relata uma raça ou ausência dela, se é do veterinário. Estamos a falar de algo que cientificamente não é possível desmistificar, não é possível atribuir uma raça cientificamente a um animal, porque não existe uma distinção genética clara e consistente entra as várias raças de cães”. Alexandre Azevedo reforça o caracter vago da legislação, que pode colocar o médico veterinário em circunstâncias delicadas. “Se o veterinário tomar a decisão de referir raça potencialmente perigosa pode estar a condenar o tutor a uma série de cuidados e despesas desnecessários. Por outro lado, se não identificar pode estar a ilibar um animal potencialmente perigoso de outros cuidados adicionais em relação aos outros animais que a lei prevê. Neste sentido, o veterinário pode receber consequências legais se um animal que ele classificou como indeterminado ferir alguém”. De acordo com o residente, até mesmo a definição de espécie é passível de ser questionada. “Não existe base científica e legal”, garante.

“Se o veterinário tomar a decisão de referir que a raça potencialmente perigosa pode estar a condenar o tutor a uma série de cuidados e despesas desnecessários. Por outro lado, se não identificar pode estar a ilibar um animal potencialmente perigoso de outros cuidados adicionais em relação aos outros animais que a lei prevê. Neste sentido, o veterinário pode receber consequências legais se um animal que ele classificou como indeterminado ferir alguém” − Alexandre Azevedo, candidato a especialista

A residência é feita com base em situações do dia-a-dia, que carecem de alguma investigação, e que depois, no período pós-laboral, é desenvolvido o estudo necessário, dando origem a abordagens mais estruturadas. Neste âmbito, o candidato a especialista terá de demonstrar ter experiência prática e dominar os conceitos de bem-estar, na ciência, na ética e na lei. A residência tem no mínimo três anos de duração e, durante esse período, explica Manuel Sant’Ana, “os residentes têm de desenvolver 120 exposições de casos”. Estes casos têm de demonstrar “que foram expostos à tal experiência − que depois vai gerar um portefólio. No final vai ser entregue ao comité de exame que fará uma avaliação oral discutindo esses casos com o residente. A maior parte deles advêm da sua prática profissional, mas outros vão estar sujeitos a parcerias”. De acordo com o médico veterinário, este é outro grande desafio da residência em bem-estar animal. “Não há uma espécie e não há um contexto, são todas as espécies e todos os contextos. Não há um perfil ideal para que o médico veterinário possa fazer uma residência de bem-estar. Qualquer contexto é bom para começar. No entanto, há que reconhecer ao candidato as suas valências e as áreas que não fazem parte da sua atividade clínica ou prática”. No caso do Alexandre, cuja atividade passa pela clínica de animais de companhia, exóticos e selvagens, “vamos ter de ir buscar parcerias na área dos animais de produção − pôr na prática como se avalia o bem-estar numa exploração pecuária −, e nos equinos − com acesso ao hospital veterinário de equinos da FMV”, nota o médico veterinário. Embora o protocolo ainda não esteja fechado, Manuel Sant’Ana prevê que irão ter uma aquacultura onde seja possível pôr em prática uma avaliação em bem-estar de peixes. O coordenador da residência sublinha que esta é a realidade adequada ao contexto do candidato Alexandre Azevedo, mas no caso de outro, “será necessário encontrar um programa diferente em função das suas necessidades”.

No que diz respeito aos requisitos para realizar a residência, a FMV exige ao candidato que este tenha um ano de experiência veterinária pós-licenciatura, com demonstração de afinidade para a área em questão. “O Alexandre foi escolhido de uma série de oito candidatos em função do perfil que garantia que podíamos ter um candidato motivado e que fosse capaz de atingir os objetivos”, revela o coordenador.

A caminho de uma melhor resposta para os animais

Uma das vantagens identificada por Manuel Sant’Ana na realização da residência passa pela possibilidade do especialista concorrer a organismos públicos ou ser chamado como perito por parte de instituições que lidem com estas matérias, como o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), Direção-Geral da Alimentação e Veterinária (DGAV) e associações profissionais. Alexandre Azevedo, no entanto, segue um caminho diferente e o seu foco passa por garantir a melhor resposta – atualizada – aos seus pacientes. “Enquanto médicos veterinários, com o volume de trabalho inerente, não temos tempo para cumprir uma das nossas principais funções: mantermo-nos atualizados. E temos um contrato com as pessoas para quem trabalhamos − a sociedade −, de lhes oferecer a informação mais correta. Estas residências alternativas são talvez mais vantajosas para quem trabalha, porque fazem o casamento entre aquilo que é a ciência e a prática. É mais o caminho do que o destino. Passa mais por conseguir estruturar o dia-a-dia e conseguir dar uma melhor reposta aos animais”, conclui.

“Estas residências alternativas são talvez mais vantajosas para quem trabalha, porque fazem o casamento entre aquilo que é a ciência e a prática. É mais o caminho do que o destino. Passa mais por conseguir estruturar o dia-a-dia e conseguir dar uma melhor reposta aos animais” – Alexandre Azevedo, candidato a especialista

*Artigo  publicado originalmente na edição n.º 150 da revista VETERINÁRIA ATUAL, de junho de 2021.

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