Na data em que a Ordem dos Médicos Veterinários (OMV) comemora três décadas de existência e para assinalar o Dia Mundial do Animal e o Dia do Médico Veterinário, também celebrados a 4 de outubro, a VETERINÁRIA ATUAL publica uma grande entrevista com o bastonário Jorge Cid. Ao fazer o balanço de tudo o que já foi conquistado e ao abordar a perspetiva futura na resolução de várias lutas, desistir e “baixar os braços” não são opções para o Conselho Diretivo da Ordem.
Que balanço faz dos seus mandatos e dos trinta anos de atividade da OMV? Quais foram as conquistas, por um lado e, as principais preocupações, por outro?
Ao longo destes anos, não podemos afirmar que tenhamos alcançado todos os desafios que tínhamos, mas temos lutado para o conseguir. Muitas vezes, não tem sido possível, como aconteceu recentemente em que debatemos com todos os meios que tínhamos à disposição pela não transferência de competências em matéria de bem-estar dos animais de companhia para o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), mas o poder político considerou de outra maneira.
Conseguimos, no entanto, ver aprovada na Assembleia da República uma resolução que é contra esta passagem de competências, mas os nossos governantes não entenderam assim e contra todas as opiniões técnicas, quer da Ordem, quer de outras organizações e da própria OMV, esta transferência foi efetivamente realizada passando estas matérias do Ministério da Agricultura / DGAV para o Ministério do Ambiente / ICNF.
Estamos expectantes, vamos continuar a manter as nossas posições, ajudaremos naquilo que for possível e o nosso objetivo é que se consiga resolver a grande problemática – talvez das maiores do País – que é o grande nível de abandono de animais que continua a existir. Entregámos ao governo uma proposta de soluções para resolver esta matéria e estamos com uma postura de cooperação seja com quem for desde que vejamos que é sensata e tecnicamente recomendável. Trabalharemos com todas as plataformas e entidades que quiserem tratar deste assunto. Temos assistido a interesse por parte da tutela e a declarações feitas recentemente por parte do Sr. Ministro do Ambiente que vão ao encontro àquilo que a Ordem defende.
Numa entrevista à VETERINÁRIA ATUAL disse que esta transferência de competências representa um retrocesso de 50 anos para o setor. Mantém esta opinião?
Quem sempre teve esta competência e tem um departamento de bem-estar animal é a DGAV. Esta área sempre teve na mão da DGAV. Por ter havido um problema que nada teve que ver com a DGAV nem com os médicos veterinários [o incêndio de Santo Tirso], houve uma resolução política para passar para outro Ministério.
Nós fomos sempre contra porque este Ministério não tinha e ainda não tem capacidade para resolver este assunto. Sei que abriu um concurso para contratação de 20 médicos veterinários e penso que ainda se encontram no processo de recrutamento, mas a questão que coloco é porque é que anteriormente não foram dados esses meios à DGAV que os havia solicitado. Inclusivamente, a OMV sensibilizou várias vezes, o governo, os deputados e a Assembleia da República para a necessidade urgente de dotar a DGAV de recursos humanos. Faltam dezenas de veterinários na DGAV e outros profissionais, mas foi-se esvaziando esta Direção Geral que há 100 anos cumpre as suas tarefas nesta área para se dar meios a outra entidade que vai começar de raiz a tentar resolver um assunto. Para nós, é um retrocesso, é perda de tempo, é perda de eficiência, mas são decisões políticas que não nos competem…
A OMV não é nenhuma força política, não tem nem terá posições deste cariz, pelo menos no meu mandato, mas é contra uma solução que nos parece aberrante e sem qualquer fundamento técnico. Enquanto médicos veterinários, estamos sempre a favor de todas as soluções que tenham uma base científica. Não podemos estar de acordo com tudo o que seja feito de uma maneira empírica que foi o que aconteceu nesta matéria. Penso que não existe nenhum estudo técnico que fundamentasse esta decisão que foi meramente política e que veio contra a realidade de outros países europeus. Criou-se assim uma situação um pouco dúbia em que a DGAV tem umas funções e a ICNF terá outras e estamos expectantes para perceber como vai acontecer esta articulação entre as duas entidades. Julgo que esta foi uma decisão desnecessária e faria mais sentido terem sido dados meios, quer financeiros, quer a nível de recursos humanos à DGAV para que se pudesse exigir que a mesma cumprisse cabalmente a sua função.
A DGAV tem anos de experiência no terreno e nestas matérias…
Sim, além de que tinha meios técnicos. Nós somos os primeiros a afirmar que havia muitas deficiências na DGAV, mas temos de reconhecer que as mesmas eram provocadas por falta de recursos financeiros e humanos. Fazendo um paralelismo, não se pode exigir que uma equipa de futebol ganhe um campeonato se estiver a jogar permanentemente com metade dos jogadores. São retirados os meios e exige-se o dobro. É evidente que isto é um contrassenso.
Nós continuamos cooperantes com as entidades que estiverem de boa vontade para resolver o flagelo dos animais abandonados. Nunca entraremos em situações de qualquer tipo de interesse nesta área ou em situações dúbias, pouco claras e que não sejam realizadas com ética, retidão e assertividade. Temos uma posição muito crítica neste assunto e consideramos que se forem efetivadas as recomendações que a OMV já deu, prevemos que o problema dos animais abandonados pode estar resolvido em cinco, seis anos. Para isso, é preciso haver vontade política e força para se efetivar aquilo que tem de ser feito.
Qual a sua opinião sobre o novo levantamento nacional dos animais abandonados?
Para nós, este é o princípio para resolver o problema. Nada se pode gerir se não se medir. Se tivermos o desconhecimento de quantos animais há em Portugal, nas associações, nos abrigos, nos canis, entre outros, nunca se consegue encontrar uma solução. Mas, para isso, é preciso muita força e vontade política, o que até hoje não houve.
“Se tivermos o desconhecimento de quantos animais há em Portugal, nas associações, nos abrigos, nos canis, entre outros, nunca se consegue encontrar uma solução. Mas, para isso, é preciso muita força e vontade política, o que até hoje não houve.”
Não está na nossa mão resolver este problema e podemos ajudar unicamente com ideias e ações, mas não deixaremos o assunto cair, seremos sempre uma força e uma voz pronta para alertar para os problemas que existem e tentar que se cumpra aquilo que tem de ser feito. Assim que se avance, seremos os primeiros a vir para a praça pública reconhecer e estamos prontos para ajudar.
A batalha do IVA para o setor continua… Qual o ponto da situação?
Temos feito várias reuniões a nível parlamentar e com o governo sobre esta matéria. Temos alguma esperança pois a Assembleia da República já fez uma recomendação para baixar o IVA. Como é óbvio, estamos expectantes e apesar de sabemos que é uma luta política extremamente difícil, não desistimos e não baixamos os braços. Continuamos a sensibilizar todos os partidos para esta problemática. Praticamente todos estão de acordo com a nossa posição. Falta apenas haver uma resolução governamental que corrobore todas as nossas pretensões e a opinião da maioria de deputados, etc.
Estamos também com o problema – muito complexo – das legalizações dos aparelhos de raio-X relativamente às radiações ionizantes. É algo que temos estado a tratar com bastante assertividade, fizemos uma proposta muito fundamentada e concreta ao Ministério do Ambiente, nomeadamente à Agência Portuguesa do Ambiente (que é quem tem a tutela deste assunto neste momento) sobre aquela que é a nossa opinião. Estamos em negociações neste momento e continuamos a dar passos embora não com a rapidez que gostaríamos, mas com o timing possível. Pessoalmente, ainda tenho esperança de que o desfecho seja razoável. É evidente que uma negociação implica sempre ganhos e algumas cedências, caso contrário, não seria uma negociação, mas à data em que estamos a falar, tenho alguma esperança de que o desfecho seja do interesse de todos os médicos veterinários que trabalham com radiações ionizantes, a maioria, nos animais de companhia mas também nos animais de produção com especial incidência nos equídeos.
A questão dos abrigos tem sido muito noticiada pelos piores motivos… Mas a realidade será muito mais alargada e preocupante. O que preocupa mais a OMV?
Temos tido situações relacionadas com incêndios, mas podiam ser por outros motivos, como inundações, por exemplo. Só quando há um incêndio é que fica tudo muito admirado para a existência de um problema. Mas os abrigos ilegais e sem condições pululam pelo País.
“Só quando há um incêndio é que fica tudo muito admirado para a existência de um problema. Mas os abrigos ilegais e sem condições pululam pelo País.”
O nosso problema é fazer um levantamento de tudo o que existe: os que têm condições podem eventualmente melhorar com apoios. Trata-se mais de perceber quais os abrigos que têm ou não condições e que colocam em causa o bem-estar animal. A situação está completamente descontrolada e parece-nos que tem de ser resolvida com a maior urgência possível.
Como é que avalia a forma como o setor encarou os desafios decorrentes da pandemia?
Fazendo uma retrospetiva, quando a pandemia teve início, tivemos grandes dificuldades até porque não estava previsto, na altura, que a atividade médico-veterinária pudesse funcionar com a sua “quase normalidade”. Tivemos várias intervenções junto do poder político, nomeadamente, no Ministério da Saúde, sendo a Ordem convidada para participar nas reuniões e continuar a fazer parte das mesmas para debater o problema da pandemia juntamente com as Ordens profissionais da saúde. Temos estado sempre presentes desde o começo e sensibilizámos para que a atividade médico-veterinária fosse uma das exceções nas restrições impostas. Conseguimos, quer ao nível dos animais de companhia, quer ao nível dos grandes animais, e fomos dando instruções aos colegas sobre o que deviam fazer segundo o que havíamos “negociado” ou explicado às entidades competentes na área da saúde.
A atividade nunca parou, os colegas fizeram um esforço sobre-humano para atender particamente todos os casos urgentes numa primeira fase, a nível de animais de companhia, de animais de produção, de inspeção veterinária, da área alimentar… Houve um grande espírito profissional e de cumprimento do seu dever por parte dos médicos veterinários que elogiei na altura e que continuarei a elogiar pois nunca deixaram que a sua atividade ficasse defraudada e que os detentores dos animais ou os agentes económicos ficassem sem apoio. Senti um grande sentimento de responsabilidade e de cumprimento de missão por parte dos médicos veterinários que tenho de agradecer e exaltar.
Das reuniões que íamos tendo com o Ministério da Saúde, íamos sempre pondo a classe médico-veterinária ao dispor para tudo o que pudesse ajudar nesta pandemia. Foram dezenas de colegas a oferecerem-se para ajudar, houve dádivas de material, disponibilidade pessoal de médicos veterinários para desempenhar várias tarefas e, ainda, a hipótese de laboratórios médico-veterinários fazerem análises à Covid-19, mas que a nível superior não foi aproveitado. Toda a classe esteve sempre à disposição para ajudar naquilo que fosse possível.
Fomos dando indicações e sugestões aos colegas sobre como é que deviam operar para não pôr em perigo, quer os detentores dos animais de companhia, de animais de produção e ainda na área alimentar e para que tudo se realizasse de forma ética e segura. Hoje em dia, acho que os médicos veterinários estão de parabéns porque demonstraram mais uma vez o seu grande espírito cívico, moral e ético. Mostrámos mais uma vez mais o valor desta nobre e grande classe.
Que mensagem deixaria aos colegas?
Espero que os médicos veterinários se revejam na sua Ordem e contribuam mais ativamente para aquilo que eventualmente pode ser melhorado. Uma Ordem não deve ser formada apenas pelos seus Conselhos, mas por todos os médicos veterinários a exercer para que se possa melhorar tudo o que é melhorável. Deixo ainda o meu grande agradecimento pelo percurso e pelo exemplo que os médicos veterinários deram na pandemia a toda uma sociedade e todo o poder político, demonstrando ter atitudes exemplares durante todo este ano e meio.
*Leia a entrevista completa na edição de outubro da VETERINÁRIA ATUAL.