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Investigação: Envenenamento de animais por pesticidas

Cães para deteção de covid começam ensaios

O envenenamento de animais de companhia e selvagens é um problema universal que pode ocorrer acidentalmente, ou devido a um ato deliberado e ilegal, ou até mesmo por envenenamentos secundários.1

Em meios urbanos, os motivos conducentes a estas situações podem assentar em conflitos interpessoais (ex.: problemas na vizinhança, intolerância em relação aos animais em causa), enquanto que em áreas rurais, o objetivo da morte deliberada de animais surge perante a crença de que estes afetem negativamente as atividades humanas (ex. caça, agricultura). 2

 

Estes envenenamentos são influenciados por múltiplos fatores, sejam estes a disponibilidade das substâncias cuja aquisição não se encontre condicionada por quaisquer restrições, a possibilidade de as comprar facilmente, as técnicas agrícolas, o contexto cultural, e o conhecimento e literacia por parte dos utilizadores, entre outros. Ademais, na maioria dos países, é fácil adquirir pesticidas para uso profissional ou doméstico. Estes produtos podem mesmo ser encontrados nos supermercados, pequenas lojas dedicadas à agricultura e no mercado online.1

Pelo seu impacto, é importante a aquisição de informação sobre a ocorrência destes episódios, sejam acidentais ou deliberados, sendo extremamente útil a colheita de dados epidemiológicos neste âmbito. Com base nos resultados, pode permitir a obtenção de informação relativamente às tendências de intoxicação, o que possibilitará por sua vez a tomada de decisão e otimização de medidas preventivas, assim como fazer uma adequada gestão de risco. Torna ainda possível ajudar os veterinários a gerir casos de suspeita de envenenamento, sem esquecer que esta é também uma questão com repercussões ambientais e na saúde humana. 1

 

Pesticidas

Os pesticidas, ao abrigo da sua definição pelo Parlamento Europeu, incluem um conjunto de substâncias utilizadas para eliminar, erradicar e prevenir organismos considerados prejudiciais, incluindo fitofarmacêuticos (utilizados em plantas) e produtos biocidas (com outras aplicações, tais como desinfeção e proteção de materiais).3 Embora seja uma nómina menos precisa no âmbito, os produtos fitofarmacêuticos são popularmente designados enquanto pesticidas, sendo referenciados como tal no presente texto. Ademais, é ainda relevante referir o uso de pesticidas no controlo de pestes em animais de companhia, nomeadamente biocidas, neste caso, não só pelo desconforto que estas causam, mas também pela sua importância na prevenção de doenças causadas por vetores artrópodes.4

 

Em Portugal, as atividades de distribuição, venda e aplicação de produtos fitofarmacêuticos para uso profissional e de adjuvantes, assim como os procedimentos de monitorização da sua utilização encontram-se reguladas pelo Decreto-lei nº 35/2017, incluindo a necessidade de formação5, o que não se aplica relativamente ao uso não profissional destas substâncias.6

Os pesticidas são frequentemente implicados nas intoxicações agudas, especialmente os moluscicidas.1 Adicionalmente, o uso de iscos envenenados pode também constituir um risco de saúde pública na medida em que impacta, quer os organismos-alvo, quer outros, incluindo humanos. Além disso, é igualmente óbvio que o envenenamento de animais tem também implicações éticas e morais.2

 

Envenenamento de animais por pesticidas na Europa

Apesar do carbofurano, um carbamato, ter sido banido da Europa, o seu envolvimento em envenenamentos intencionais continua a ser documentado, quer em relação a animais de companhia, quer em relação a animais selvagens. No departamento de Patologia, da Universidade de Ciências Agrícolas e Medicina Veterinária Cluj-Napoca, na Roménia, foram identificados sete cães, entre 2015 e 2017, vítimas de intoxicação intencional por este composto. O exame post-mortem revelou hemorragia extensa e congestão, localizada principalmente nos sistemas respiratório, nervoso e cardiovascular, associada a degeneração e necrose nos pulmões, coração e rins. 7

Na Europa observou-se que os cães, especialmente os animais jovens, eram as mais frequentes vítimas de envenenamento entre os animais de companhia, sendo relevante mencionar o risco para tal imposto pela exposição a inseticidas e rodenticidas.8 Num outro estudo retrospetivo, decorrido entre 2011 e 2013, 37.3% de todos os casos de suspeita de envenenamento de animais de companhia reportados ao Centro de Controlo de Envenenamentos de Milão eram causados por pesticidas. Mais uma vez, o cão (71.1%) foi o animal mais frequentemente envolvido, seguindo-se o gato (15.8%) e, em menor grau, cavalos, cabras e ovelhas. Neste caso, os inseticidas (40,8%) foram o pesticida mais frequentemente envolvido na exposição, especialmente a piretrina/piretróides. Os rodenticidas constituíram 27.6% das solicitações, com destaque para os anticoagulantes, e os herbicidas, 14,2%, destacando-se o glifosato em casos que envolveram cães, gatos, cabras, cavalos e ovelhas. Por fim, 11,5% das solicitações respeitaram a moluscicidas, e 5.9% a fungicidas, ambas envolvendo maioritariamente cães, por metaldeído e compostos de cobre, respetivamente.9

Em Espanha, numa análise que considerou um período de dez anos, entre 123 casos suspeitos de envenenamento deliberado de animais domésticos e selvagens, 102 foram analisados, concluindo-se que 50 consistiram em envenenamento intencional. Neste caso, os pesticidas, em particular os inseticidas (72%) e os rodenticidas (26%), foram também frequentemente envolvidos nestas situações, sendo o aldicarb, os rodenticidas anticoagulantes e a estricnina as toxinas mais frequentes em iscos preparados para envenenamentos intencionais.10

Observou-se também num estudo italiano, no universo de 1831 suspeitas de envenenamento em animais e 698 casos de episódios de recuperação de iscos supostamente envenenados, a confirmação de envenenamento em 35.1% dos casos, verificando-se a presença de agentes tóxicos em 41.8% dos iscos. É relevante observar que os territórios com maior nível de urbanização e densidade populacional foram os mais severamente afetados, além de se verificar uma tendência caracteristicamente sazonal, com um aumento dos episódios no fim do inverno/início da primavera e no outono. Neste caso, os inseticidas contendo carbamato foram a principal causa de envenenamento em animais, tendo os rodenticidas anticoagulantes um papel principal entre os tóxicos encontrados nos iscos envenenados.2

De notar que na Europa os animais selvagens não deixam de ser vítimas desta problemática, sendo as aves de rapina e as aves aquáticas mais afetadas do que os mamíferos selvagens.11

Envenenamento de animais por pesticidas em Portugal

Um estudo retrospetivo1 avaliou a incidência da deteção de pesticidas entre 2014 e 2020, com base em amostras enviadas para a Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa, por parte de consultórios veterinários e do Programa Antidoto Portugal. Este programa foi criado em 2003 precisamente com o objetivo de estudar quais e como as substâncias tóxicas eram utilizadas, de forma a travar a morte de animais selvagens e de companhia por envenenamento.

De acordo com este estudo, os animais de companhia mais afetados foram cães (89%), sendo seguidos pelos gatos (13%) e por outras espécies, como cavalos, porcos e ovelhas (4%).1 Em relação às espécies selvagens afetadas em Portugal, os milhafres surgem em primeiro lugar (42%), seguindo-se as avestruzes (15%), águias (8%), gralhas (6%) e outras espécies (6%).1 Neste sentido, a Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária publicou o guia “Casos de Suspeita de Envenenamento: Guia rápido para Médicos-Veterinários”12, elaborado no âmbito do Projeto LIFE MedWolf, com o propósito de disponibilizar informação sobre envenenamento da fauna selvagem e procedimentos a adotar.

Observou-se também que a intoxicação por moluscicidas e carbamatos constituiu uma das maiores causas de envenenamento em espécies domésticas e selvagens em Portugal. Os iscos têm aplicações domésticas e comerciais para proteger jardins e colheitas. Os moluscicidas podem envenenar animais domésticos e selvagens, incluindo aves, que são predadores naturais de moluscos e também ingerem iscos produzidos com estas substâncias. Estes compostos são os mais utilizados no envenenamento intencional, uma vez que estão disponíveis em superfícies comerciais sem um controlo efetivo sobre o propósito ou quantidades adquiridas. Adicionalmente, os inseticidas são utilizados de forma universal, sendo inevitável o envenenamento acidental de animais. 1

Toxicidade de Pesticidas (exemplos)

Hidrocarbonetos clorados

Poucos hidrocarbonetos clorados se encontram para uso associado a animais. Estas substâncias são neurotoxinas, atuando no sistema nervoso central, podendo também lesar as funções renal e hepática.4 Enumeram-se na Tabela 1 alguns sintomas de envenenamento por hidrocarbonetos clorados.

Sintomas

1.     Vómitos

2.     Agitação ou excitabilidade

3.     Tremor

4.     Posturas anormais

5.     Convulsões

6.     Insuficiência respiratória

7.    Coma

Tabela 1 – Sintomas de envenenamento por hidrocarbonetos clorados

 

Organofosfatos

Os organofosfatos são neurotoxinas que atuam ao inibir irreversivelmente a enzima acetilcolinesterase. Na tabela 2, encontram-se descritos os sintomas de envenenamento por organofosfatos. 4

Sintomas
Envenenamento ligeiro

1.     Suores

2.     Tremores da língua e pálpebras

3.     Constrição excessiva dos músculos oculares

4.     Lacrimação

5.     Aumento da salivação e secreções do trato respiratório

Envenenamento moderado

1.     Sintomas iniciais tornam-se mais graves

2.     Vómito

3.     Bradicardia

4.     Tremores musculares incontroláveis

Envenenamento grave

1.     Inconsciência

2.     Diarreia

3.     Pupilas mióticas (“pinpoint pupils”) e não reativas

4.     Perda de reflexos

5.     Perda de controlo esfinctérico

6.     Coma

7.     Convulsões

8.     Cianose

Tabela 2 – Sintomas de envenenamento por organofosfatos

Carbamatos

O aldicarb (carbamato) foi introduzido na agricultura em 1960 para controlar insetos, ácaros e nemátodos.1 O aldicarb apresenta-se na forma de pequenos grânulos pretos. Quando esta substância está associada ao isco, é fácil de detetar a olho nu, mas não é percecionado cheiro ou sabor pelo animal que a ingere.1 Os carbamatos são neurotoxinas que atuam ao inibir reversivelmente a enzima acetilcolinesterase, apresentando portanto sintomas semelhantes aos causados por organofosforados.4

Estricnina

A estricnina é um alcaloide indólico obtido a partir das sementes da árvore Strychnos nux-vomica ou Strychnos ignatii, sendo maioritariamente utilizado para envenenar ratos, aves e carnívoros selvagens, como raposas e lobos. A estricnina é um veneno extremamente tóxico e de rápida ação: atua no sistema nervoso central, conduzindo a convulsões e morte. O diagnóstico é confirmado por recuperação da substância considerada dos conteúdos gástricos, sangue, vómito, fígado, urina e rins. O seu uso e comercialização tem sido banido desde 1988, contudo continua a ser uma das substâncias utilizadas para envenenamento em Portugal.1

Pesticidas anticoagulantes

Os pesticidas anticoagulantes têm sido vastamente utilizados para controlo de pestes. O envenenamento pode ocorrer por consumo ocasional de iscos com anticoagulantes e presas contaminadas, em caso de envenenamento secundário. Estas substâncias interferem com a síntese hepática de fatores de coagulação dependentes da vitamina K. A morte geralmente ocorre uns dias depois após a ingestão dos rodenticidas, observando-se que estas substâncias ainda causam episódios de envenenamento em espécies domésticas e selvagens. 1

Piretróides

O envenenamento por piretróides é mais raro. Estes são derivados sintéticos das piretrinas, atuando como neurotoxinas que atuam nos canais de sódio dos insetos e causando paralisia. A toxicidade destes pesticidas em mamíferos é extremamente baixa, sendo as hipóteses de envenenamento quase inexistentes, a não ser que os animais ingiram formulações que não tenham sido preparadas para administração.4

Sintomas precoces/ligeiros

1.     Salivação

2.     Vómito

3.     Diarreia

4.     Tremores ligeiros

5.     Excitabilidade/depressão

Sintomas tardios/severos

1.     Hipertermia

2.     Hipotermia

3.     Dispneia

4.     Tremores graves

5.     Desorientação

6.     Convulsões

7.     Morte por falência respiratória

Tabela 3 – Sintomas de envenenamento por piretróides

Referências Bibliográficas

  1. Grilo, A., Moreira, A., Carrapiço, B., Belas, A. & São Braz, B. Epidemiological Study of Pesticide Poisoning in Domestic Animals and Wildlife in Portugal: 2014–2020. Front. Vet. Sci. 7, 616293 (2021).
  2. Bille, L. et al. Epidemiology of animal poisoning: An overview on the features and spatio-temporal distribution of the phenomenon in the north-eastern Italian regions. Forensic Sci. Int. 266, 440–448 (2016).
  3. Georgios Amanatidis. Produtos químicos e pesticidas. Fichas temáticas sobre a União Europeia https://www.europarl.europa.eu/factsheets/pt/sheet/78/produtos-quimicos-e-pesticidas (2020).
  4. Kaufman, P. E. & Weeks, E. N. I. Pesticide Safety around Animals. https://edis.ifas.ufl.edu/ig128.
  5. Agricultura Florestas e Desenvolvimento Rural. Decreto-Lei n.o 35/2017. 1616–1617 (Diário da República n.o 60/2017, Série I de 2017-03-24, 2017).
  6. Direção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural. Esclarecimento sobre o uso não profissional de Produtos Fitofarmacêuticos. https://www.dgadr.gov.pt/15-formacao-profissional/561-esclarecimento-sobre-o-uso-nao-profissional-de-produtos-fitofarmaceuticos.
  7. Pivariu, D. et al. Intentional Carbofuran poisoning in 7 dogs. BMC Vet. Res. 16, 318 (2020).
  8. Berny, P. et al. Animal poisoning in Europe. Part 2: Companion animals. Veterinary Journal vol. 183 255–259 (2010).
  9. Caloni, F., Cortinovis, C., Rivolta, M. & Davanzo, F. Suspected poisoning of domestic animals by pesticides. Sci. Total Environ. 539, 331–336 (2016).
  10. M Motas-Guzmán, P Marla-Mojica, D Romero, E Martínez-López & Antonio J García-Fernández. Intentional poisoning of animals in southeastern Spain: a review of the veterinary toxicology service from Murcia, Spain – PubMed. Vet Hum Toxicol 45, 47–50 (2003).
  11. Guitart, R. et al. Animal poisoning in Europe. Part 3: Wildlife. Veterinary Journal vol. 183 260–265 (2010).
  12. DGAV divulga guia com informação sobre envenenamentos da fauna selvagem e como proceder – Veterinaria Atual. https://www.veterinaria-atual.pt/no-campo/dgav-divulga-guia-com-informacao-sobre-envenenamentos-da-fauna-selvagem-e-como-proceder/.

*Artigo publicado originalmente na edição 147,  de março de 2021, da VETERINÁRIA ATUAL.

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