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Doença renal crónica felina: Diagnóstico precoce e comunicação são a chave do sucesso

Gatos podem ajudar a encontrar tratamento para o HIV Direitos reservados

Um estudo publicado por Tomás Magalhães tirou uma “fotografia” à forma como os médicos veterinários portugueses diagnosticam, tratam e monitorizam a doença renal crónica na população felina. Os dados mostraram que os profissionais conhecem as orientações internacionais sobre as melhores práticas para o maneio clínico desta patologia, mas também apontaram falhas no cumprimento destas mesmas guidelines na prática quotidiana.

Conhecer a forma como a comunidade médica veterinária portuguesa diagnostica, trata e acompanha os utentes felinos com doença renal crónica (DRC) foi o objetivo do estudo Clinical management of feline chronic kidney disease in Portugal: a questionnaire-based study, publicado em novembro passado no Journal of Feline Medicine & Surgery.

 

O trabalho faz parte do projeto de doutoramento de Tomás Magalhães, médico veterinário investigador da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) e presidente do Grupo de Interesse Especial em Medicina Felina (GIEFEL) da Associação Portuguesa de Médicos Veterinários Especialistas em Animais de Companhia (APMVEAC), cuja inclinação pessoal por esta temática está diretamente associada à elevada prevalência desta patologia na população felina. “Não podemos esquecer que, depois dos 10 anos, quatro em cada 10 gatos tem esta doença. Sem dúvida que a DRC é muito prevalente e tem taxas de mortalidade e morbilidade muito elevadas”, explica o investigador à VETERINÁRIA ATUAL.

“Muitas vezes, estes pacientes são diagnosticados numa fase mais tardia da doença, numa altura em que já há sintomas extra-renais, como náuseas, vómitos ou perda de peso.” – Tomás Magalhães, médico veterinário e investigador na UTAD

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Com este “retrato do maneio clínico da DRC felina em Portugal”, o médico veterinário quis recolher dados que servissem “para todos refletirmos como há certos pontos no maneio [destes doentes] que podem ser melhorados” e os dados recolhidos das respostas que 409 profissionais facultaram para a investigação mostram, efetivamente, que há margem para melhorar a prática clínica.

A começar pelo diagnóstico. Dos inquiridos, 53,5% referiu que diagnostica em média dois a cinco casos por mês, tendo sido possível destrinçar que os diagnósticos em estruturas de maior dimensão, como hospitais e clínicas, são mais frequentes do que os realizados em pequenos consultórios.

 

Tomás Magalhães admite que, sendo uma patologia tão frequente em felinos, estes dados podem demonstrar um subdiagnóstico da DRC. “Muitas vezes, estes pacientes são diagnosticados numa fase mais tardia da doença, numa altura em que já há sintomas extra-renais, como náuseas, vómitos ou perda de peso”, comenta o investigador, que acredita: “Se for feito o screening a todos os gatos a partir da meia-idade estaremos a diagnosticar a doença numa fase mais precoce e creio que estes números aumentariam”.

As diferenças no total de diagnósticos realizados em hospitais e clínicas e os registados em consultórios de menor dimensão podem ser o reflexo das diferentes ferramentas diagnósticas disponíveis em cada uma destas estruturas. As de maior dimensão mais facilmente têm disponíveis meios ecográficos e aparelhos de medição de pressão arterial, enquanto nos consultórios “o diagnóstico é muito baseado nos valores da azotémia que, no estadio 1 [da DRC], ainda não existe”, aponta Tomás Magalhães. Nessa medida, diz o investigador, é fundamental reforçar que “o diagnóstico da doença renal não pode estar limitado à analítica sanguínea e tem de ter em conta a analítica urinária e os exames imagiológicos”.

 

Joana Valente e Inês Guerra estão mais do que habituadas a lidar com as particularidades desta população. Ambas só fazem medicina felina e, por isso mesmo, quando olham para os dados do estudo, reconhecem que veem muito mais gatos com DRC do que a média dos médicos veterinários inquiridos, o que as faz ter uma perspetiva mais assertiva do que pode ser aplicado na prática clínica.

“A medicina preventiva deve ser a base da medicina felina já que vai diminuir a questão da falta de compliance por motivos económicos por parte dos tutores.” – Joana Valente, médica veterinária no Anicura – Alma Veterinária

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Responsável pelo departamento de medicina felina do Anicura – Alma Veterinária, com certificação enquanto general practitioner em Feline Practice pela European School of Veterinary Postgraduate Studies e membro da International Society of Feline Medicine (ISFM), Joana Valente advoga que a educação dos tutores deve iniciar-se logo nas primeiras consultas do gato, na mais tenra idade possível, “explicando desde o início que a espécie felina é diferente” e a que doenças é mais vulnerável. “Se fizermos as consultas anuais de rotina como recomendam as guidelines, vamos conseguir diagnosticar mais precocemente a DRC”, com impacto no prognóstico e na qualidade de vida do animal, assim como nos custos associados ao seu correto acompanhamento. “Se o estadio for I ou II os follow-up’s vão ser mais espaçados e [os animais] não vão descompensar tão rápido”, enquanto um gato diagnosticado com DRC em estadio III ou IV é “mais instável, vai precisar de um acompanhamento mais frequente e, consequentemente, mais dispendioso”, explica, reiterando: “A medicina preventiva deve ser a base da medicina felina já que vai diminuir a questão da falta de compliance por motivos económicos por parte dos tutores”.

Ainda assim, admite Inês Guerra, “não raras vezes chegam animais seniores ou mesmo super-seniores que não têm análises realizadas”. A responsável pelo departamento de comportamento felino no Grupo Hospital do Gato, certificada em comportamento felino pela ISFM, também insiste na necessidade de “diagnosticar o mais cedo possível a DRC, uma patologia que pode ser tratada” a bem da esperança média de vida e do bem-estar do animal.

Estadiamento da DRC está a falhar

E, de facto, conhecimento sobre boas práticas parece não faltar na comunidade veterinária nacional. Aliás, um ponto que Tomás Magalhães destacou como positivo nas respostas recolhidas é que 92,7% dos médicos veterinários inquiridos garantiram que conhecem as guidelines internacionais que existem para o diagnóstico, tratamento e seguimento da DRC felina. Estas linhas de orientação são disponibilizadas gratuitamente online pela International Renal Interest Society – que atualizou as recomendações para o tratamento e estadiamento da DRC em 2023 – e pela ISFM, que tem diretrizes sobre que exames clínicos devem ser realizados em cada idade do felino. A partir dos seis anos de idade, as recomendações são claras: anualmente, devem ser realizadas análises sanguíneas completas, avaliações urinárias, ecografia e medição da pressão arterial sistémica.

Foi por existir este conhecimento do que está preconizado pelas sociedades científicas para o acompanhamento destes animais de companhia que não deixou de “surpreender negativamente” o investigador que só 19,1% dos clínicos assuma medir regularmente a pressão arterial sistólica e 27,4% tenha admitido que nunca ou raramente o faz. Ou seja, os dados mostram que, apesar de conhecerem as orientações que determinam quando se deve fazer o rastreio da doença e também como fazer o estadiamento da DRC – pela avaliação da creatinina e do SDMA (dimetilarginina simétrica) – e o sub-estadiamento, pela pesquisa de proteinúria e pela medição da pressão arterial sistólica, esta última “é realizada por uma percentagem reduzida de colegas, o que significa que estamos a subdiagnosticar a hipertensão arterial”, nesta população e a subtratar esta comorbilidade, quando os dados internacionais apontam que entre 20% e 65% dos felinos doentes renais são hipertensos.

“É importante mudar o mindset: não só precisamos diagnosticar a DRC, mas também necessitamos estadiar a doença.” – Inês Guerra, médica veterinária no Hospital do Gato

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Sem a avaliação desse indicador agrava-se o prognóstico do gato doente renal, já que a hipertensão arterial tem consequências ao nível do órgão primário, o rim, mas também noutros órgãos-alvo, como o cérebro, o coração e os olhos, e tem um impacto muito negativo ao nível da qualidade de vida do animal.

Estes foram precisamente os pontos realçados por Inês Guerra e Joana Valente. A primeira realça que se não se estadiar a DRC implica que “não conseguimos ver o todo” do quadro clínico do animal, nem se medica uma complicação que terá sérias implicações a médio/longo prazo na saúde do gato. “É importante mudar o mindset: não só precisamos diagnosticar a DRC, mas também necessitamos estadiar a doença”, defende.

Já Joana Valente aponta na direção da importância de praticar “medidas de maneio amigável” para que os médicos veterinários deixem de temer manipular estes animais, que ainda têm a pender sobre eles o rótulo da agressividade e instabilidade, para fazer para a avaliação da pressão arterial. “Realmente o [maneio] cat friendly não é um mito e quando aplicado faz completamente a diferença nesta e noutras doenças em medicina felina”, acrescenta.

Os truques sugeridos pelas médicas veterinárias passam por medir a pressão arterial na cauda, ou na pata, pode ser feito até dentro da transportadora, e de preferência “deve ser feito no início da consulta [depois da ambientação do gato] e não deve ser deixado para o fim, porque depois de termos manipulado o animal os níveis de stress já podem estar mais elevados e os resultados não serem representativos”, explica Inês Guerra.

Números da monitorização da DRC em Portugal  (Colocar números em grande)

19,1%

Percentagem de médicos veterinários que avalia sempre a pressão arterial sistólica

35,6%

Percentagem de médicos veterinários que consegue manter a periodicidade de acompanhamento do doente em 2/3 meses ou menos

56,9%

Percentagem de médicos veterinários que aconselha a transição imediata ou em menos de uma semana para a dieta renal

Evitar o “pacote de tratamento do doente renal crónico”

No tratamento da DRC, o gold standard e a abordagem que tem mais provas dadas na evidência científica é a alteração da dieta do animal. Neste ponto, quase a totalidade (99,3%) dos médicos veterinários nacionais inquiridos relataram que recomendam a introdução da dieta renal, mas 36,9% reconheceu que, na prática, esta representa menos de 75% da ingestão diária do animal. Além disso, acrescenta Tomás Magalhães, a investigação revelou que “uma percentagem altíssima de colegas (73,4%) está a introduzir a dieta renal independentemente do estadio da doença”, sem fazer a correta transição e independentemente do estado geral do animal. Nas respostas recolhidas, 20% dos clínicos reconheceram que não fazem transição e 74% assumiu que a transição recomendada deve acontecer em duas semanas ou menos. Ou seja, aquela que é a abordagem mais eficaz à doença “está a ser introduzida de forma desadequada, apressada e indiscriminadamente”, resume.

A médica veterinária do Anicura-Alma Veterinária corrobora com esta visão. Lembra que o sucesso da transição dietética reside na sua iniciação “quando o gato está estável e o apetite dele ainda é normal, deve ser feita de forma gradual e não deve ser misturada com a ração normal no mesmo prato”. Se o animal estiver numa fase de descompensação, ou até mesmo no internamento, “a inapetência para a dieta renal é maior e a aceitação é mais difícil”.

Além disso, Joana Valente sublinha que, em casos de doentes em estadio I não há indicação para fazer uma dieta renal, que até pode ser muito restritiva para esse animal, e o aconselhado é optar pelas novas dietas pré-renais que começam a surgir no mercado, indicadas precisamente para os estadios precoces da DRC.

Quanto à abordagem terapêutica, a utilização dos estimulantes de apetite, dos bloqueadores dos canais de cálcio, dos inibidores da enzima de conversão da angiotensina (IECA’s), dos aglutinantes de fosfato e das sessões de fluído terapia espelham o conhecimento dos clínicos das guidelines internacionais sobre o tratamento farmacológico recomendado. Todavia, o investigador insurge-se contra a prescrição do “pacote de tratamento renal crónico”, com que o tutor sai do consultório logo após o diagnóstico. O médico veterinário defende que “esta abordagem não serve para todos os pacientes” e é necessária uma individualização da terapêutica para o animal em específico, que sirva as necessidades clínicas e acautele também uma correta abordagem financeira por parte do tutor.

A título de exemplo, enumera, um IECA só deve ser prescrito se existir uma proteinúria persistente, os aglutinantes de fosfato só fazem sentido quando não se consegue uma correta adesão à dieta renal e as sessões de fluidoterapia, pelo stress que podem causar ao animal, só devem ser consideradas após o insucesso de medidas caseiras que levem à ingestão voluntária de água.

“O que é prescrito não o pode ser cegamente, deve ter em conta o animal que temos à nossa frente”, acrescenta Inês Guerra, que sublinha ainda a grande prevalência de outras doenças concomitantes nesta população, tantas vezes sénior, que implicam uma abordagem individualizada.

Acompanhamento: apostar na tríade tutor-animal-médico veterinário

Sendo uma doença crónica e para o resto da vida do animal, os dados apurados pelo questionário aos profissionais nacionais mostrou, igualmente, que há uma margem larga para melhorar o seguimento a longo prazo destes doentes.

Em primeiro lugar, no acompanhamento pós-diagnóstico. Se 70,9% dos médicos veterinários recomenda que os gatos estabilizados sejam reavaliados pelo menos a cada 2/3 meses, apenas 35,7% reconheceu que a periodicidade é cumprida pelos tutores.

Para conhecer os verdadeiros motivos que estão por trás desta falta de compliance por parte dos tutores, o investigador da UTAD está a conduzir outro questionário, desta feita dirigido aos detentores de gatos com doença renal. Mas, mesmo ainda sem ainda conhecer os resultados, o clínico ouvido pela VETERINÁRIA ATUAL avança com dois que podem encabeçar essa lista: o fraco poder financeiro dos tutores e as más experiências em centros de acompanhamento médico veterinário (CAMV).

Nesta matéria, a médica veterinária do Hospital do Gato volta a insistir na comunicação com o tutor. “Se explicarmos o porquê de ser importante este acompanhamento, que o que queremos é que a progressão da doença seja o mais lenta possível, as pessoas quando percebem a importância mais facilmente aceitam [o plano de tratamento/acompanhamento]”, diz Inês Guerra.

Quanto às más experiências em CAMV, os três médicos veterinários voltam a insistir nos benefícios das práticas cat friendly – desde o transporte de casa ao CAMV, até ao momento da consulta – tanto para acalmar o animal, como para tranquilizar o tutor e ajudá-lo a cumprir o acompanhamento proposto.

Em suma, o que os clínicos ouvidos pela VETERINÁRIA ATUAL defendem é aquilo a que Tomás Magalhães denominou de “aposta na tríade tutor-animal-médico veterinário”, onde a comunicação clara sobre os dados da prevalência da doença, os sinais de alerta, as complicações associadas e as repercussões que a DRC pode ter na qualidade de vida do animal ajudam a um melhor cumprimento das orientações clínicas para esta população em específico.

Inês Guerra considera que este trabalho “é um marco importante para reconhecer o que temos de trabalhar melhor” neste campo, para fomentar uma prática alicerçada nas guidelines disponíveis, pois a crescente esperança média de vida da população felina levará, certamente, ao aumento da prevalência da DRC. “O que a medicina veterinária não pode fazer é olhar para esta doença hoje como olhava há uns anos e como terá de olhar daqui para frente”, conclui.

Formação pode ajudar a mudar o paradigma

Carolina Bento, é docente na Escola Universitária Vasco da Gama (EUVG), responsável pela unidade curricular opcional de medicina felina do Mestrado Integrado de Medicina Veterinária e pelo curso de medicina felina do mestrado em Medicina Interna. Ambas as áreas são recentes na EUVG e refletem o cada vez maior interesse dos formandos por esta área em específico do saber veterinário. “A opcional de medicina felina abriu este ano [letivo] e tivemos cerca de 20 alunos interessados”, adianta a médica veterinária.

Sobre a realidade refletida no estudo, Carolina Bento realça “a conclusão positiva: os veterinários portugueses mantêm-se atualizados e estão sensibilizados para a existência das guidelines”.

Quanto à aplicação das mesmas na prática clínica, a docente acredita que “cabe-nos a nós, na academia, ir sensibilizando para a prevalência deste inimigo silencioso que é a DRC que, apesar de não dar grandes sinais [numa fase precoce], pode ter graves consequências nos pacientes geriátricos”.

Nessa medida, a EUVG aposta na formação com uma abordagem prática, em que até os professores levam os próprios gatos para que os alunos comecem a ter contacto com os felinos em consulta, a medir a pressão arterial – tanto com o modelo oscilométrico, como com o doppler – a fazer a anamnese para rastrear as doenças mais prevalentes em cada faixa etária do felino.

A docente reconhece que até há uma década, ainda se olhava para os gatos “como se fossem cães pequenos”, mas a formação académica pré e pós-graduada está a ajudar a mudar este paradigma, com foco nas práticas cat friendly e na atualização das guidelines internacionais.

E Carolina Bento espera que a academia ajude também a colmatar uma das “lacunas” identificadas na prática clínica: a falta de comunicação com o tutor. “Temos de formar técnicos [de saúde veterinária], mas também temos de formar pessoas com competências de comunicação com o tutor e com empatia, que expliquem que estamos todos a concorrer para o mesmo, que é o bem-estar animal, e ajudem a melhorar a compliance”, remata.

*Artigo publicado na edição 179, de fevereiro, da VETERINÁRIA ATUAL.

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