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Médicos Veterinários

Desafios laborais na veterinária: A urgência pela equidade das regras do jogo

Carga horária excessiva, turnos estendidos, noites mal dormidas e remunerações aquém de todo o esforço. Este é um panorama que se torna cada vez mais comum nos Centros de Atendimento Médico-Veterinários (CAMV) em Portugal. As circunstâncias aceleram a necessidade de uma regulação laboral, que crie regras equitativas para as clínicas e hospitais veterinários, com benefício para colaboradores e entidades empregadoras.

Atualmente em Portugal não existe um instrumento de regulação coletivo de trabalho específico para a veterinária, como já acontece noutros setores. Todas as questões laborais acabam por se reger pelo código do trabalho português, que é genérico e, naturalmente, não se foca nos meandros particulares da medicina veterinária. Face ao panorama atual, envolto em diversos desafios para o setor, tem surgido o debate em torno da necessidade de uma regulação laboral que oriente as regras do jogo e que coloque todas as empresas e entidades patronais em igualdade de circunstância. Algo que além de benéfico para a classe − médicos, enfermeiros e auxiliares veterinários − também seria vantajoso para as empresas do setor.

 

“Seria favorável um contexto em que a carga horária fosse mais disciplinada, com regras mais uniformes e que se conseguisse estabelecer um padrão mínimo para todos os profissionais.” – Pedro de Almeida Cabral, SNMV

 

A carga horária e o trabalho por turnos, que também inclui noites, são os principais problemas reportados pela classe, impeditivos para a gestão saudável entre a vida laboral e profissional, e que também estão na génese do desenvolvimento de casos de burnout. A falta de proteção laboral tem impacto em todas estas questões, com a violação de algumas regras que dizem respeito ao não cumprimento dos tempos normais de trabalho, número de consultas, excesso de horas de cirurgia, incapacidade de fazer pausas para o almoço nos tempos devidos, dificuldade em marcar férias e de se ausentarem por motivo de doença.

As dúvidas e as queixas da classe

 

Pedro de Almeida Cabral é advogado do Sindicato Nacional dos Médicos Veterinários (SNMV) e pronuncia-se relativamente às queixas mais persistentes por parte dos associados. No setor privado refere que as questões mais reportadas têm que ver com as remunerações e a carga laboral. “Os horários de trabalho muitas vezes são excessivos, não se respeitam os intervalos para descanso e há uma utilização abusiva da isenção do horário de trabalho. Há também uma combinação prejudicial no que diz respeito ao trabalho noturno e por turnos, o que resulta que os horários sejam muito pesados, com prejuízo para a vida pessoal e familiar dos médicos veterinários.”

O sindicato, através de apoio jurídico, tenta esclarecer os profissionais para que possam defender melhor os seus direitos e tentar que os horários de trabalho sejam encaixados na lei, o que nem sempre é fácil, porque estas questões são muitas vezes discutidas diariamente entre os médicos veterinários e os CAMV, sem que haja um padrão. “Seria favorável um contexto em que a carga horária fosse mais disciplinada, com regras mais uniformes e que se conseguisse estabelecer um padrão mínimo para todos os profissionais”, considera o consultor jurídico. Num segundo plano, existem também incidências laborais relacionadas com a marcação de férias, muitas vezes comprometidas pela dificuldade em coordenar as equipas, sobretudo em clínicas e hospitais veterinários de maior dimensão. As horas extras e a forma como devem agir perante as urgências também levantam algumas questões, particularmente quando o médico veterinário fica com o telefone das urgências a cargo. “Este procedimento não é regulado de forma apropriada nos contratos de trabalho o que acaba por resultar em prejuízo para os médicos veterinários. Nem sempre surgem urgências no período em que estão de vigília, mas têm de assumir na mesma a responsabilidade, estando disponíveis caso sejam solicitados. Desta forma, seria justo que fossem devidamente remunerados durante todas essas horas, mesmo que não surjam pedidos.”

 

“Ter uma equipa fixa vale ouro e também é importante que haja uma cultura de bem-estar, em que as pessoas se sintam felizes. Custa muito formar um médico veterinário, podemos até aprender as regras rapidamente, mas a aquisição da cultura das empresas leva tempo.” – Hugo Lopes, Centro Veterinário de Alverca

No setor público, os veterinários municipais têm uma dinâmica diferente, com regras mais rígidas, não existindo livre concorrência para fixação de remunerações. Ainda assim, além dos horários de trabalho que se assemelham aos do setor privado, os veterinários dos municípios deparam-se com inúmeros entraves à progressão da sua carreira. De acordo com Pedro de Almeida Cabral, “a carreira desta classe está em revisão há mais de 20 anos e tem resultado numa progressiva degradação que prejudica não só os profissionais, mas também todos os que dependem dos serviços que prestam em cada município”.

O que falta para uma gestão mais profissionalizada dos CAMV?

Além da perspetiva do sindicato, a VETERINÁRIA ATUAL também quis conhecer esta realidade junto de quem lida diariamente com os desafios do trabalho nos CAMV.

Hugo Lopes, médico veterinário no Centro Veterinário de Alverca, que também presta serviços num hospital em Inglaterra, destaca a inexistência de uma gestão profissional de recursos humanos nas clínicas e hospitais veterinários em Portugal, fazendo-se valer da sua experiência profissional no estrangeiro. “Um dia em Portugal é mais stressante do que uma semana em Inglaterra”, garante o profissional, fazendo referência ao rácio de colaboradores por médico veterinário nos CAMV. “Os americanos e os britânicos têm um rácio de três pessoas por cada médico veterinário, já no nosso País este é de um para um. A diferença de custo de um médico veterinário para um enfermeiro veterinário não é muito grande e, por isso, opta-se por contratar mais veterinários, o que acaba por comprometer toda a estrutura, dificultando o nosso trabalho ao termos menos apoio. Se tiver três pessoas – enfermeiros e auxiliares − a dar suporte ao meu trabalho, conseguirei produzir muito mais e ter uma rotina mais descansada”, garante. O excesso de médicos veterinários é apontado como outra das falhas do setor em Portugal, considerando que há um problema de retenção e não de falta de profissionais no setor. “Formamos 600 veterinários por ano, temos sete mil no ativo, e a cada ano este número vai crescendo 10%. Temos excesso de veterinários e estamos a formá-los para irem para o estrangeiro, porque cá não lhes são dadas as devidas condições”, refere.

A insatisfação por falta de condições reflete-se na rotatividade dos profissionais nos CAMV, gerando instabilidade nos espaços, com impacto também para os clientes. “Ter uma equipa fixa vale ouro e também é importante que haja uma cultura de bem-estar, em que as pessoas se sintam felizes. Custa muito formar um médico veterinário, podemos até aprender as regras rapidamente, mas a aquisição da cultura das empresas leva tempo.”

Do ponto de vista da organização financeira dos CAMV, Hugo Lopes manifesta-se e tece duras críticas à falta de gestão profissional por parte dos decisores, particularmente no que diz respeito ao preço das consultas. “Se há excesso de procura e não conseguem pagar melhor aos colaboradores é porque está a ser feita uma má gestão. A lei da oferta e da procura é que determina o preço das consultas e o sucesso de uma empresa não passa por ter muitos clientes, nem por trabalhar muito, mas sim por ser rentável, ter liquidez e gerir bem os seus ativos − as pessoas.” Recorre à realidade das urgências para dar o seu exemplo. “Em Inglaterra uma urgência custa 250 libras, caso o tutor se desloque ao CAMV antes das 22h, depois deste horário sobe para 360 libras. Desta forma não há falsas urgências”, garante o médico veterinário, que também presta funções num hospital no Reino Unido. A gestão profissional que se verifica neste país, na perspetiva de Hugo Lopes, está em parte relacionada com uma maior liquidez, na medida em que o preço é adequado à procura e ao volume de trabalho que têm nos CAMV. “O rendimento médio de um inglês é sensivelmente o dobro do nosso e os serviços veterinários custam cinco a dez vezes mais”, revela.

Em busca do equilíbrio entre a vida profissional e pessoal

Tiago Trovão, médico veterinário, que atualmente exerce funções no grupo IVC Evidensia como mergers and acquisitions manager, também dá o seu parecer quanto a estas questões, fazendo referência “a situações graves que ocorrem nos CAMV e que derramam no crescimento de casos de burnout” − amplamente referidos pela classe veterinária no nosso País. Considera ainda que os CAMV estão mais atentos, mas as ações tomadas acabam por se mostrar insuficientes. “Particularmente no IVC Evidensia, e com a experiência internacional que o grupo detém, acabámos por encontrar diferentes fatores que consideramos contributivos para o burnout. Em Portugal, País no qual o IVC Evidensia se encontra há pouco tempo, já apontámos algumas estratégias, mas ainda estão em processo de maturação. Estamos em processo de aprendizagem relativamente a este mercado e a perceber quais são os seus principais problemas”, revela.

A medicina veterinária está organizada de uma forma “que não permite o equilíbrio entre a vida pessoal e profissional e é importante que exista a consciencialização de que esta é uma profissão com muitas exigências”. – Tiago Trovão, IVC Evidensia

O mergers and acquisitions manager fala também do ideal romântico da profissão veterinária que leva a maioria dos estudantes a enveredar por este caminho, notando o desencanto que vai crescendo por parte da classe quando começa a dar os primeiros passos nos CAMV. Este fenómeno verificado não raras vezes “é fruto de expectativas que são defraudadas antes e durante o curso”, refere Tiago Trovão, sublinhando que “o estudante que se propõe ingressar no curso de medicina veterinária não tem conhecimento do mercado laboral, nem das rotinas que se estabelecem”. Foram estas adversidades que o levaram a repensar o seu percurso clínico – área que sempre aspirou seguir. Não querendo afastar-se totalmente da medicina veterinária acabou por rumar em direção à vertente da gestão. Reforça que a medicina veterinária está organizada de uma forma “que não permite o equilíbrio entre a vida pessoal e profissional” e, por isso, considera importante que exista a consciencialização de que esta é uma profissão com muitas exigências. “Há uns anos valorizava-se muito a experiência profissional e esta sobrepunha-se a tudo o resto, mas, atualmente, para as novas gerações, este equilíbrio é fundamental.

A conciliação entre a vida laboral e pessoal é igualmente notada por Hugo Lopes, que, na sua opinião, pesa particularmente na gestão familiar dos colaboradores com filhos. Neste campo, mostra também preocupação com o desfasamento demográfico no setor, realçando a predominância feminina e a discrepância entre as bases e as direções dos CAMV, relativamente ao género e à idade. “A maior parte dos órgãos da classe são dirigidos por homens mais velhos, que chefiam mulheres jovens, por sua vez trabalhadoras por conta de outrem.” Para o profissional este é um ponto fulcral com repercussões no equilíbrio entre a vida e profissional e familiar dos colaboradores dos CAMV. “Um dos principais fatores de diferenciação de carreira tem que ver com a gestão familiar. As mulheres − e também os homens − que desempenham o papel de principais cuidadores dos filhos têm maiores dificuldade em progredir nas suas carreiras. Esta é uma inevitabilidade e considero que deveria existir um reconhecimento social desse papel.” Com uma representação demográfica feminina tão elevada, considera fundamental incentivar as mulheres veterinárias, que querem seguir carreira, a ocupar locais de decisão, algo que, na sua opinião, teria repercussões na carga laboral, nos turnos, nas noites e no trabalho ao fim de semana. “O custo familiar de um fim de semana para quem tem filhos é gigante, assim como o de fazer noites também. Existem estudos que demonstram que crianças filhas de pais que fazem turnos noturnos ou estendidos têm probabilidade de ter mais acidentes que os outros. Os pais estão mais sonolentos, a vigília é menor e têm menor rigidez de rotinas”, nota.

*Leia o artigo de opinião na íntegra na edição 175, de outubro, da VETERINÁRIA ATUAL

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