Foi um estágio no estrangeiro que levou Maria Oliveira a tornar-se especialista europeia em neurologia veterinária. Depois de alguns anos a trabalhar fora de Portugal “em busca do sonho”, as saudades levaram-na a regressar. Considera que ainda existe alguma resistência na referência de casos clínicos, defende a criação de um sistema nacional de reconhecimento e de regulamentação de especialidades veterinárias com um enquadramento legal próprio e a reformulação e modernização da formação dos estudantes.
Como tem sido o seu percurso profissional até hoje?
Tudo se iniciou com o último ano do curso de Medicina Veterinária em que despertei o interesse pela neurologia com o professor Artur Varejão. O facto de ter tido a sorte de estagiar em dois sítios onde a neurologia era uma disciplina muito forte ajudou-me a fomentar o gosto por essa área. Estagiar no estrangeiro permitiu-me contactar com realidades, até então, muito pouco divulgadas em Portugal, isto é, ter conhecimento da existência de programas de residência (especialização) aprovadas pelo Colégio Europeu e reconhecidas internacionalmente.
Ao concluir o estágio, o meu percurso profissional foi conduzido no sentido de tentar aprender com os melhores sobre esta área. Iniciei o internato geral no hospital que me acolheu em Barcelona como estagiária, o Hospital Ars Veterinária, e mais tarde, acabei por conseguir a residência na Universidade Autónoma de Barcelona. Entre o internato e a residência, ambos nesta cidade, estive ainda durante um período no Reino Unido, onde trabalhei como médica geral e fui visitando centros com a especialidade em neurologia, com o objetivo de aprender mais e com a intenção de me candidatar à residência da especialidade.
Após ter terminado a residência fui trabalhar – durante um ano e meio – no Hospital Ars Veterinária, onde tinha realizado o internato geral. Depois, surgiu um novo desafio para ir trabalhar para um hospital privado de referência, em Inglaterra, o Pride Veterinary Centre, o qual aceitei. Acabei por ficar em Inglaterra quase cinco anos, tendo trabalhado, para além deste último, no Willows Veterinary Centre. Contudo, a vontade de estar perto da família falou mais alto e, no início de 2020, mudei-me finalmente para Portugal onde estive a trabalhar em dois hospitais no norte do País, o Hospital Veterinário Bom Jesus e o Hospital Veterinário da Trofa, onde estive até ao início deste ano. Atualmente abracei um novo projeto com o grupo Onevet e estou a trabalhar no Onevet Hospital Veterinário Porto. Estou muito entusiasmada.
O que a levou a escolher a profissão de médica veterinária?
Tenho uma enorme paixão por animais desde sempre e acredito que isso se deva ao facto de ter crescido numa família que teve sempre cães. A vontade de ser médica veterinária acompanha-me desde pequena e acredito que é o reflexo do amor que sempre tive pelos animais.
“Verifica-se uma lacuna na legislação portuguesa relativamente à proteção do título de ‘especialista’, o que pode gerar ambiguidade e afetar a confiança do público e dos próprios profissionais no sistema”
Como decidiu tirar a especialidade fora de Portugal?
O que mais me fascinou na especialidade foi o simples facto de ao realizar um exame neurológico completo poder localizar a lesão no sistema nervoso. Durante o meu período de estágio tive a sorte de poder contactar com diferentes clínicos que me ajudaram a enriquecer o conhecimento e a paixão por esta área, fortalecendo o meu interesse pela especialização. O facto de ter estagiado fora de Portugal deu-me a conhecer a existência de internatos rotatórios e programas de especialização reconhecidos a nível europeu, que não eram, até essa altura, divulgados pelo nosso País.
Dado que em Portugal não existia nenhum centro que pudesse oferecer este tipo de programas e como tinha muito claro que queria especializar-me com este grau de conhecimento em neurologia, fui obrigada a sair do país em busca do meu sonho.
Considera que Portugal está equiparado a outros países europeus na prática de medicina veterinária? O que falta?
Considero que temos excelentes profissionais em Portugal e que o nível de conhecimento é bom. Por outro lado, noto que nos últimos anos se está a apostar cada vez mais na compra de equipamentos avançados, realçando, por exemplo, a TAC, que já é uma prova de imagem avançada comum em muitos hospitais, assim como a RM cuja aquisição cresceu de uma forma exponencial sobretudo na região norte do País. Vejo isto com bons olhos, mas também acho que além de se apostar em equipamentos é importante ter profissionais preparados para os usar e saber interpretar os exames obtidos.
Por outro lado, tenho a perceção de que ainda há algum desconhecimento e desinteresse por parte da classe veterinária portuguesa relativamente às especialidades certificadas pelos diferentes colégios europeus, sendo estas altamente valorizadas, há já alguns anos, nos nossos países vizinhos. Acho que a mentalidade está a mudar, mas gostaria de ver mais colegas portugueses com especialidade – e que que vivem lá fora – regressarem a Portugal.
Gostaria ainda de ver mais especialistas envolvidos no ensino nas universidades portuguesas. Por último, a valorização profissional ainda precisa de melhorias, quer seja a nível salarial, como a nível de reconhecimento social. Muitos veterinários enfrentam baixos salários, excesso de horas e burnout, especialmente nos primeiros anos de carreira. Muitos portugueses acabam por emigrar para países, como o Reino Unido, entre outros, especialmente devido a condições salariais mais elevadas.
Que benefícios terá a especialidade que tirou para a sua carreira?
Em primeiro lugar, permite-me fazer aquilo que eu mais gosto e desfrutar de todos os dias de trabalho. Por outro lado, o estatuto de diplomada dá-me reconhecimento internacional e a abertura para trabalhar noutros países. Também tenho a possibilidade de colaborar com universidades em projetos de investigação e formar outros colegas que tenham interesse nesta área.
Como vê o estado atual do estatuto de especialista veterinário em Portugal?
O estatuto de especialista veterinário em Portugal continua a ser uma temática de grande relevância, mas também de alguma indefinição. Apesar dos avanços registados nas últimas décadas, nomeadamente no reconhecimento de áreas de especialização e na consolidação da formação pós-graduada, persiste uma ausência de regulamentação clara e uniformizada que defina os critérios e os mecanismos de atribuição formal desse estatuto.
Atualmente, o reconhecimento de especialidades veterinárias é feito sobretudo através de colégios europeus [European Board of Veterinary Specialisation – EBVS], sendo que muitos profissionais portugueses optam por esta via internacional para a obtenção de certificação. Contudo, a integração dessas especializações no sistema nacional continua limitada, o que levanta questões quanto ao enquadramento legal, ao reconhecimento institucional e à diferenciação profissional no exercício da medicina veterinária em território nacional. Adicionalmente, verifica-se uma lacuna na legislação portuguesa relativamente à proteção do título de “especialista”, o que pode gerar ambiguidade e afetar a confiança do público e dos próprios profissionais no sistema. Torna-se, portanto, imperativo que as entidades competentes, nomeadamente a Ordem dos Médicos Veterinários e o legislador nacional, desenvolvam um quadro normativo robusto que assegure critérios objetivos e transparentes para o reconhecimento de especialidades, promovendo simultaneamente a valorização profissional e a salvaguarda da saúde animal e pública.
A que mudança gostaria de assistir no futuro no nosso País, seja uma inovação, ou algo diferenciador para a prática da sua profissão?
Defendo a criação de um sistema nacional de reconhecimento e regulamentação de especialidades veterinárias, alinhado com os padrões europeus, mas com enquadramento legal próprio. Tal inovação traria clareza ao exercício profissional, permitiria uma melhor diferenciação de competências e fomentaria a excelência clínica e científica. Por outro lado, gostaria de ver uma relação profissional mais próxima entre colegas, isto porque tenho a sensação de que ainda há alguma resistência na referência de casos clínicos, o que em alguns casos clínicos mais complexos iria permitir mais partilha de conhecimento e, por outro lado, uma abordagem mais diferenciada.
Uma mudança que considero essencial para o futuro da medicina veterinária em Portugal, e que gostaria de ver promovida no seio das universidades, é a reformulação e modernização da formação dos estudantes, para torná-la mais adaptada aos desafios atuais e futuros da profissão.
Gostaria de assistir a uma maior integração prática ao longo de todo o percurso académico, aproximando desde cedo os estudantes da realidade clínica, laboratorial e de saúde pública. A introdução de métodos ativos de aprendizagem, como simulações clínicas, aprendizagem baseada em casos e projetos interdisciplinares, pode melhorar significativamente a capacidade crítica, a autonomia e a preparação para contextos reais. Adicionalmente, a criação de vias de especialização facultativas no último ano do curso, alinhadas com as áreas reconhecidas pelo EBVS, permitiria que os estudantes pudessem começar a delinear o seu percurso profissional de forma mais estruturada, com orientação académica e suporte institucional adequados.
Especificamente na área de neurologia, quais são os desafios que apresentam os pacientes que acompanha e como avalia a complexidade dos casos?
Existem vários tipos de desafios na minha área, desde logo na consulta, em que através do exame físico e neurológico completo tenho de determinar se o paciente em causa tem, ou não, um problema neurológico e, caso o tenha, é preciso localizar a lesão no sistema nervoso. Existem algumas patologias que mimetizam problemas neurológicos e é essencial diferenciá-las das verdadeiras doenças neurológicas.
Infelizmente, em algumas patologias, por exemplo, a epilepsia ou a meningoencefalite de origem desconhecida (autoimune), a resposta ao tratamento pode variar entre pacientes, e por isso é-nos difícil prever, muitas vezes, a resposta do nosso paciente, exigindo ajustes constantes nas terapias e a preparação dos tutores para situações em que os protocolos utilizados podem não resultar.
A comunicação com os tutores pode ser também desafiante. Nem sempre é fácil a compreensão por parte do tutor sobre algumas condições complexas e as opções de tratamento. Algumas condições neurológicas requerem monitorização e tratamento contínuo, o que pode ser um desafio tanto para o veterinário quanto para os tutores em termos de comprometimento e recursos.
No que diz respeito à avaliação da complexidade dos casos, esta é feita, levando em consideração vários fatores, como a grau de afetação neurológica, a idade do paciente, a presença de comorbilidades e a possibilidade de tratamento ou resposta ao tratamento. A colaboração com outros especialistas, quer sejam da área ou de outras especialidades, também pode ser necessária para uma compreensão completa do caso e um maneio eficaz.
“A carência de uma cultura generalizada de partilha e de união estratégica entre os diferentes setores da profissão contribui para a fragmentação e dificulta a construção de uma identidade coletiva sólida”
Como é atualmente o seu dia profissional?
Geralmente, os dias de trabalho no hospital costumam começar com a avaliação dos pacientes neurológicos que estão hospitalizados ou dos novos casos que deram entrada na urgência. Temos uma hora no hospital de manhã em que os casos que envolvem várias disciplinas são debatidos entre departamentos. Após a ronda da manhã seguem-se as consultas de casos novos ou casos que vêm para controlo. Muitos dos casos novos podem ficar no hospital para a realização de provas de diagnóstico [análises sanguíneas, ecografia, RM, colheita e avaliação de LCR, etc.] e execução de cirurgias [algumas programadas, outras realizadas de urgência]. Os dias no serviço de neurologia podem ser, muitas vezes, inesperados, uma vez que a neurologia vive muito de urgências.
O facto de ter estudado e trabalhado no estrangeiro deu-lhe uma maior “bagagem” para exercer no nosso País? Pondera voltar a trabalhar fora?
Sem dúvida que a experiência no estrangeiro me enriqueceu, não só a nível profissional, mas também a nível pessoal. Ao ter a oportunidade de trabalhar lá fora tanto no meio académico, assim como no setor privado e num ambiente multicultural, com equipas grandes, com elevada casuística permitiu-me desenvolver e melhorar competências, como a comunicação, a capacidade de tomar decisões e a gestão de casos e de tempo. Foi-me permitido ver diferentes formas de abordagens aos casos. Ao interagir com tanta gente também tive a possibilidade de alargar o meu networking.
Atualmente, não penso ir viver para fora, uma vez que estou numa fase da minha vida em que tento conciliar a minha vida profissional com a minha vida familiar. No entanto, continuo ocasionalmente a ir fazer trabalhos pontuais ao Reino Unido porque é uma forma de manter o contacto com os colegas e ver outras formas de trabalhar.
Considera que a classe é hoje mais unida e que dignifica a profissão ou, pelo contrário, assiste a uma falta de mudança de mentalidades?
A minha experiência em Portugal após ter concluído o curso foi muito curta e resumiu-se a apenas seis meses de trabalho em clínica antes de ter emigrado. Estive fora cerca de 12 anos e regressei, em 2020, por isso, tenho alguma dificuldade em avaliar a evolução. No entanto, desde que cá estou assisti a mudanças positivas. Acho que a aquisição de clínicas e hospitais pelos grandes grupos económicos favoreceu e facilitou a aproximação entre colegas, promovendo a partilha de conhecimento, formação interna e a referência de casos.
No entanto, a carência de uma cultura generalizada de partilha e de união estratégica entre os diferentes setores da profissão contribui para a fragmentação e dificulta a construção de uma identidade coletiva sólida. Uma via concreta para promover essa mudança de mentalidades seria a criação de programas nacionais de formação e networking, promovidos pelas universidades e pela Ordem dos Médicos Veterinários, que aproximem estudantes, recém-licenciados e profissionais experientes. Estes programas poderiam fomentar a partilha de experiências, o desenvolvimento de competências transversais e o reforço da identidade profissional, contribuindo para uma cultura mais colaborativa, solidária e orientada para a inovação.
Passámos por uma pandemia, vivemos um período de inflação e de instabilidade económica e política, o que pode refletir-se em barreiras económicas para os tutores, no que respeita ao orçamento dedicado ao tratamento dos animais. Sente alguma retração por parte dos tutores?
No início da pandemia, senti uma quebra geral nos hospitais onde trabalhava, e pelo que ia ouvindo de outros colegas, foi algo que aconteceu noutros centros.
No entanto, nota-se novamente um crescimento da procura, mais uma vez, no âmbito geral. Relativamente aos tutores que procuram o serviço de Neurologia, são geralmente os que já vêm preparados para os custos que envolvem as provas de diagnóstico e tratamento e, nesse sentido, geralmente não sinto tanta retração. Por outro lado, tenho-me apercebido que existem cada vez mais tutores que têm um seguro animal.
O que gosta mais de fazer na sua profissão?
O que me dá mais satisfação é poder ver casos que são da minha área de especialidade que, por vezes, são complexos, exigem investigação, estudo, e que passam por discussão em equipa. Os casos cirúrgicos podem ser muito gratificantes, por exemplo, pacientes que deixaram de caminhar devido a uma extrusão discal, neoplasia ou anomalia congénita e que conseguimos que voltem a caminhar.
Por outro lado, o que a desgasta mais e de que forma procura atenuar as exigências, o cansaço acumulado e as situações mais sensíveis de gerir no dia a dia?
Acho que o que mais me desgasta são aqueles casos em que se fez tudo e não respondem da forma previamente esperada.
Onde se imagina daqui a cinco anos a nível profissional?
Imagino-me num serviço de neurologia constituído por mais colegas com quem possa partilhar os casos da especialidade e a formar colegas interessados na área. Também me imagino a ter mais envolvimento no mundo académico e, quem sabe, a fazer um doutoramento.