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Médicos Veterinários

“Costumo dizer que foi o coelho e a lebre que me obrigaram a ser virologista”

Rodrigo Cabrita

Depois de alguns anos dedicado ao estudo e conservação do coelho-bravo e da lebre-ibérica, Fábio Abade dos Santos decidiu que estava na hora de se diplomar enquanto médico veterinário especialista. Em entrevista à VETERINÁRIA ATUAL, explica porque preferiu o American College of Veterinary Microbiology (ACVM), do American Board of Veterinary Specialist, ao congénere europeu e se tornou no primeiro medico veterinário português diplomado por esta organização.

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Como surgiu a ideia de fazer a especialização por um colégio americano? O mais comum entre os médicos veterinários portugueses é optar, em virtude da proximidade, pela especialização dos colégios europeus…

 

Não foi, de todo, propositado. Durante a minha tese de doutoramento a especialização era já um objetivo, especificamente a especialização em virologia. Contudo, de facto, não há nem na Europa, nem nos Estados Unidos da América, um colégio específico para a virologia. É necessário fazer a especialização na área da microbiologia geral, que inclui as áreas da virologia, da bacteriologia e da imunologia.

Comecei a tentar perceber como poderia concretizar o objetivo da especialização. Em Portugal, pelo menos do meu conhecimento, com diferenciação em virologia, existe apenas um diplomado [no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS)]. Existem outros diplomados europeus, mas que trabalham apenas com bactérias.

 

Iniciei o processo para uma residência no colégio europeu com o colega do ICBAS, uma vez que tinha assuntos que me impediam de deslocar geograficamente por longos períodos. Tenho a minha empresa e os centros de reprodução necessitam de acompanhamento, por isso o meu plano A era fazer a especialização em Portugal sem ter de me ausentar do País.

O que o fez mudar de planos?

 

Enquanto este processo decorria tinha algumas conversas profissionais, relacionadas com publicações de artigos e outros assuntos, com colegas americanos que, ao conhecerem o meu percurso, me alertaram para o facto de que teria condições para me candidatar a fazer a especialização pela via direta.

Existem várias vias [de especialização] no colégio americano, a mais comum é através da realização de uma residência, mas depois há a via curricular. Nessa via, tive de reunir três sponsors, ou seja, três diplomados ativos do colégio que apoiavam a minha inclusão como membro por esta via.

 

Comecei o processo de candidatura em abril de 2023 e no final de junho tive a resposta positiva. Isto permitiu-me ter abdicado da residência, pois consideraram que o meu currículo era equivalente a esse período de formação, o que me possibilitou ter a especialização três ou quatro anos antes do que previa.

Este é um colégio com 50 anos de existência, é dos mais antigos, ao contrário do europeu que foi fundado há menos de 10 anos. Acaba por ter outro estatuto e honra-me muito pertencer a este colégio.

Fotografia: Rodrigo Cabrita

Com este reconhecimento, pude avançar para a realização dos exames [finais]. Penso que o colégio recomenda dois ou três anos de estudo para os exames, mas decidi propor-me a fazer todos os exames no ano passado. Os exames seriam realizados em novembro, ou seja, tinha de estudar de junho até novembro toda a microbiologia geral – que é um exame dividido em três partes focadas na área das bactérias, da virologia e da imunologia – para o exame geral e obrigatório. Depois, no mesmo ano, propus-me realizar os exames [específicos] de virologia e de imunologia.

Porque decidiu juntar todos estes exames? Foi uma carga de estudo bastante intensa …

Por várias razões. A primeira é que os últimos anos, em termos académicos, foram muito intensos. Fiz dois doutoramentos em duas faculdades em quatro anos. Estava a sentir que não queria passar vários anos com o stress de uma especialização. Apostei tudo [na realização dos exames em conjunto], pois só há duas oportunidades para passar nos exames do colégio. Era um risco controlado, porque tinha mais uma hipótese.

E sei que o meu percurso, tendo em conta os projetos que tenho em mãos, vai ser um crescendo em termos de tempo ocupado. A partir deste ano não teria mais a disponibilidade que tive na altura para, praticamente, abdicar de tudo e colocar-me em casa a estudar.

Foi muito difícil e tive a sorte de ter o apoio de todos os sítios onde tinha atividade profissional e em casa tive todo o apoio familiar.

É mesmo muita matéria e, felizmente, correu bem.

Os exames são realizados online, através de um sistema de monitorização por inteligência artificial, e há um conjunto de regras que temos de cumprir para garantir, nomeadamente, que estamos sozinhos e não estamos a utilizar recursos indevidos.

O problema foi mesmo a diferença horária que fez com que um dos exames acabasse às três da manhã.

Burnout em medicina veterinária “é assustador”

Num artigo que publicou na VETERINÁRIA ATUAL escreveu que “um médico veterinário é apenas um burnout vestido de pijama verde”. Esta questão da saúde mental continua a ser pouco abordada nas faculdades de medicina veterinária?

E é assustador. Sabemos que não é exclusivo desta profissão, assistimos a estas situações noutras classes profissionais, mas não é por acaso que esta é uma classe muito sujeita ao burnout.

A associação americana [American Veterinary Medical Association] mostrou que a nossa classe profissional tem uma probabilidade de taxa de suicídio 3,7 vezes superior à da população em geral e este é um número que nos deve preocupar, porque junta em si todas as questões que podem levar a um desequilíbrio emocional dos profissionais.

As pessoas quando vão para medicina veterinária fazem-no porque gostam de animais, mas lidar com animais doentes é muito difícil. E há a questão da eutanásia, das dificuldades na relação com os tutores …

Parece-me que às vezes se passa a ideia de que um dos problemas principais da profissão é lidar com os animais doentes e com as eutanásias. Não penso que seja esse o maior problema para a saúde mental.

Os veterinários sempre contactaram com animais doentes e nunca se lidou com esta taxa de problemas de saúde mental na profissão como hoje.

O grande problema é o facto de a profissão não concretizar muitas das ideias que as pessoas têm quando vão para a mesma. Seja a questão dos turnos devido ao crescimento dos hospitais, o não ter a retribuição monetária devida tendo em conta as exigências da profissão, os colegas que querem exercer a medicina veterinária mais evoluída têm de ir para grandes centros urbanos, onde as condições remuneratórias não permitem viver com qualidade. Não considero que isso seja aceitável numa profissão que foi sujeita a uma formação profissional muito específica.

Por outro lado, o veterinário tem de lidar com tutores que o estão a avaliar em contínuo e que querem tomar posição relativamente às suas decisões clínicas.

Atenção, há muitos tutores bons, e a maioria são bons, mas numa série de 20 consultas se houver uma má é essa que nos vai atormentar durante uma semana se for preciso.

E depois é a questão da expectativa. Nos últimos anos a medicina veterinária tem evoluído muito, assistimos a técnicas que têm surgido na nossa profissão e que não estão atrás da medicina humana, mas depois os colegas não têm possibilidade de recorrer a elas ou porque a clínica não tem esses recursos ou porque os tutores não têm meios para as pagar e isso é muito difícil de aceitar.

Entre as vias que a especialização lhe permitia percorrer, porque escolheu a virologia?

Posso dizer que fui quase empurrado para a virologia por causa das espécies de que gosto. Costumo dizer que foram o coelho e a lebre que me obrigaram a ser virologista. Fiz a minha tese de mestrado e de doutoramento nessa área.

Na altura que estava a fazer o mestrado comecei a fazer voluntariado com uma sociedade para o estudo das aves nas Berlengas e, num determinado momento, houve uma grande mortalidade de coelho-bravo no local. Era uma espécie que já gostava, cresci numa zona onde existiam bastantes coelhos e assisti ao declínio da espécie in loco. Sempre tive uma grande sensibilidade para o coelho.

Quando estava nas Berlengas víamos os coelhos a morrer, levei-os para a faculdade e chegámos ao diagnóstico de doença hemorrágica viral. Acabei por publicar o primeiro artigo nessa área ainda durante o mestrado em medicina veterinária. Fiz a minha tese de mestrado sobre essa doença, depois comecei imediatamente o doutoramento.

Aquando do meu doutoramento sobre a doença hemorrágica viral começaram a morrer as lebres-ibéricas em grande quantidade e fui, mais uma vez, empurrado para estudar o Myxoma virus na lebre. Comecei a interessar-me pela espécie e foi fundado o Centro de Reprodução da Lebre-ibérica com o objetivo de contribuir para a recuperação da espécie, que continua num estado lastimável, tal como o coelho. O ano passado a lebre teve um alerta vermelho nos nossos mamíferos [“Livro Vermelho dos Mamíferos de Portugal Continental” do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF)], o coelho já lá estava.

Fotografia: Rodrigo Cabrita

O seu percurso tem sido pouco comum comparativamente com o caminho escolhido por muitos dos seus colegas. A prática clínica num centro de atendimento médico veterinário (CAMV) não era aliciante para si?

O meu percurso quase não teve pausas. Efetivamente, já exerci a atividade de medico veterinário em duas clínicas, antes de começar o doutoramento e depois através dos serviços que continuo a prestar no Hospital de S. Bento.

Mais uma vez tem a ver com as espécies de que gosto. Muito mais facilmente conseguirei fazer a diferença com o coelho e com a lebre do que provavelmente outras pessoas que não estarão tão habilitadas para tal, ou porque não têm conhecimento sobre a espécie ou porque não reúnem a equipa que consegui reunir. Ao passo que, nas espécies de animais de companhia, sinto que temos a sorte de ter um corpo clínico no País muito diferenciado e em crescendo.

Em virtude do decréscimo que assistimos nestas espécies nos últimos anos dediquei-me a esta área, mas no futuro não tenho qualquer problema em mudar. Se pensar que conseguiremos reverter esta situação e se não tiver mais nada a fazer nesta área até era bom sinal. Não me aborreceria nada.

“Este [ACVM] é um colégio com 50 anos de existência, é dos mais antigos, ao contrário do europeu que foi fundado há menos de 10 anos. Acaba por ter outro estatuto e honra-me muito pertencer a este colégio”

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Nos últimos anos a vertente da especialização tem crescido bastante no seio da medicina veterinária. Qual é o seu olhar para esta mudança de paradigma em que os médicos veterinários procuram ter uma maior diferenciação?

Não tenho uma visão muito sectária, que divida os colegas entre diplomados ou não diplomados. Não foi isso que me levou a perseguir a especialidade. Sei, e reconheço, que há muitos colegas que não são nem doutorados, nem diplomados, mas têm muito mais conhecimento em determinadas áreas do que outros que o são.

Em Portugal, em específico, não existe da parte dos nossos clientes uma sensibilização [para a especialização]. Nunca ninguém, na minha atividade clínica, me deu mais valou por ser doutorado ou por ser diplomado.

Na nossa classe profissional sim, isso faz diferença e leva ao reconhecimento por parte dos pares, mas por parte dos clientes não.

Os colegas começaram por ver que este é um caminho crescente, é valorizado na classe, e tendo em conta que somos cada vez mais – com um maior número de alunos nas faculdades de medicina veterinária – penso que os colegas acabaram por perceber que esta é a forma mais direta de se diferenciarem dos demais.

Não tenho por certo que no nosso País existam grandes diferenças remuneratórias [entre diplomados e não diplomados], como acontece noutros países. A maior parte dos diplomados até estão nas faculdades porque o nosso tecido empresarial dos CAMV não tem ainda capacidade para remunerar de forma competitiva e diferenciada esses recursos em relação aos demais.

E de que forma esta especialização vai influenciar o trabalho no Centro de Reprodução de Lebre-ibérica?

Quanto mais diferenciados somos, mais portas se abrem em termos de redes de contactos com colegas de outros países. É um pouco um cartão de identidade que faz diferença e já notei isso.

Além disso, enriquecer o currículo permite uma maior competitividade em termos de projetos de investigações. Ao ter no currículo que somos diplomados aumenta a probabilidade de se obter financiamento para a realização de investigação nas várias temáticas. Para tudo é preciso dinheiro e na área de investigação é preciso muito e estas diferenciações ajudam e estou em crer que me vai ajudar, direta ou indiretamente.

E como é está o trabalho no Centro de Reprodução da Lebre-ibérica? Já começaram a sair animais para o repovoamento do habitat natural da espécie?

O trabalho tem estado a correr muito bem. Já deixámos sair 150 animais que foram colocados nas zonas de Beja e de Évora. Os repovoamentos são sempre assistidos por nós, vamos ao local e fazemos o acompanhamento, mas ainda só realizámos repovoamentos em locais privados, junto de pessoas com propriedades grandes que conhecem o nosso trabalho e simpatizam com as espécies.

Mas mantêm monitorização dos animais que libertam?

No caso das lebres não podemos colocar colares de GPS como se faz em espécies maiores, pois elas reagem mal a esse tipo de equipamentos. Saem com um brinco [de identificação] e durante os primeiros tempos os animais são colocados numa zona com vigilância, em cercados com centenas de hectares. Mas é um animal que se espanta muito facilmente e a partir do momento em que a lebre tem as suas crias torna-se difícil [monitorizar].

“Ao ter no currículo que somos diplomados aumenta a probabilidade de se obter financiamento para a realização de investigação nas várias temáticas”

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Fizemos repovoamentos em três locais, o efetivo aumentou bastante e já foram animais desses para outros locais. Sendo uma espécie pequenina e com um ritmo de reprodução elevado fica difícil de acompanhar, mas os dados que já recolhemos são muito positivos em termos de adaptação dos animais e os nossos parceiros estão muito satisfeitos.

É muito importante este trabalho de repovoamento tendo em conta o alerta vermelho ICNF sobre o perigo de extinção da lebre-ibérica?

Efetivamente. E o nosso trabalho já começa a levar à mobilização de outras estruturas. Por exemplo, muito recentemente iniciámos uma parceria com a Câmara Municipal de Mértola para a recuperação de umas instalações que estavam abandonadas há cerca de 15 anos e procedermos à sua requalificação para instalar um projeto-piloto de reprodução do coelho-bravo e, no futuro, também da lebre-ibérica. Já recolocámos cerca de 40 animais em setembro, um número que vai ascender a cerca 500 animais no final do mês de abril, e a segunda fase é a saída dos animais.

É um local onde estamos a fazer o estudo de várias técnicas de monitorização. Existe a monitorização em direto do coelho-bravo, 24 horas sobre 24 horas, e estamos também a proceder ao desenvolvimento de uma ração que será lançada no mercado até ao final do ano para estas duas espécies. As rações que existem não estão adaptadas a estes animais, mas sim aos coelhos de produção. Há cerca de ano e meio que estamos a desenvolver esta ração e estamos muito próximos da fórmula final porque com a ração atual os animais ou não a comem ou se a ingerem têm alterações intestinais que podem levar à morte. O alimento é a chave para a recuperação destes efetivos.

E a investigação que fazem relativamente às doenças infeciosas que afetam estas espécies, que conclusões pode avançar?

Os últimos anos têm sido muito ricos relativamente às questões virais destas espécies. Desde 2018 que temos a mixomatose da lebre, que nunca tinha sido afetada, um vírus que causa muita mortalidade. E estão sempre a emergir novos vírus de doença hemorrágica viral, novas alterações genéticas, recombinações que desafiam a imunidade dos animais.

A nossa equipa também descreveu um herpesvírus da lebre-ibérica que também tem impacto na mortalidade e em termos reprodutivos da espécie.

Temos em curso alguns estudos fundamentais em termos de procura de soluções vacinais para estes animais, mas o grande problema é exatamente como administrar as vacinas nestes animais. No centro de reprodução não temos grandes desafios, obviamente conseguimos manusear bem os animais e vaciná-los, mas no campo essa possibilidade não existe e por termos essa dificuldade é que surgiu o 4Fauna.

“Estamos a desenvolver várias soluções, a mais sonante será um sistema de vacinação automática destes animais no campo, que está em fase final de desenvolvimento”

Em que consiste o projeto 4Fauna e como pode ajudar na recuperação destas espécies no habitat natural?

Reunimos uma equipa na qual existe um matemático, um agente do campo, uma pessoa relacionada com a virologia e estamos a trabalhar ativamente no desenvolvimento de soluções para a fauna, tendo sempre como exemplo e espécies de estudo o coelho e a lebre. O facto de termos os centros de reprodução – quer o de Torres Vedras, quer o de Mértola – facilita-nos o estudo dos protótipos.

Estamos a desenvolver várias soluções, a mais sonante será um sistema de vacinação automática destes animais no campo, que está em fase final de desenvolvimento. Trata-se de um comedouro munido de inteligência artificial capaz de identificar no campo espécies da fauna selvagem através de um algoritmo que ao reconhecer o coelho e a lebre, por exemplo, que se estão a alimentar nesse comedouro vacina-os automaticamente através de um sistema sem agulha desenvolvido por nós, que conserva a vacina mesmo em condições de campo.

Estamos também a desenvolver outras soluções de monitorização dos animais recorrendo a estas mesmas ferramentas de inteligência artificial para observação, contagem e identificação dos animais sem que tenhamos de recorrer a muita mão-de-obra humana.

*Entrevista publicada na edição 182, de maio, da VETERINÁRIA ATUAL.

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