Cerca de 175 participantes juntaram-se naquele que foi o primeiro dia das Conferências Veterinária Atual realizadas em formato digital. Uma abordagem integrada da saúde, a partilha de conhecimento, a gestão multidisciplinar e a necessidade da aposta na formação e na sensibilização da população são aspetos fundamentais para uma melhoria da prática clínica. Uma só saúde, vários intervenientes.
O conceito de One Health / Uma Só Saúde é sobejamente conhecido da classe veterinária. Mas será facilmente percetível pela população em geral? E para onde queremos caminhar em Portugal para que o mesmo seja aplicado na prática do dia a dia? Que caminho ainda temos a percorrer? Num ano tão atípico como este e que está prestes a terminar, o papel do médico veterinário saiu ainda mais reforçado. A conjuntura atual veio reforçar a sua relevância, não só como profissional de saúde, mas, sobretudo, como agente de saúde pública. Mas será que já é devidamente reconhecida pela população em geral?
Estes foram alguns dos muitos ângulos de debate da primeira tarde das Conferências Veterinária Atual dedicada ao tema “One Health, One Business”, numa iniciativa conjunta da revista Veterinária Atual e da IFE Abilways realizada via plataforma Zoom e transmitida também em direto pelo Facebook da revista.
Ana Botelho, responsável pelo Laboratório de Bacteriologia e Micologia da Unidade de Produção e Saúde Animal do Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária (INIAV) e Sandra Cavaco, médica veterinária e investigadora no mesmo instituto, partilharam a primeira apresentação sobre se os médicos veterinários podem ser, de facto, agentes de saúde pública. “O conceito one health, criado pelo antropologista e médico Rodolf Virchow, é multidisciplinar e atualmente, com a pandemia, o conceito ainda é mais alargado”, explicou Ana Botelho. Em setembro de 2004, surgiram doze recomendações que viriam a ditar esta abordagem holística para prevenir doenças epidémicas e epizoóticas.
“Deve haver uma sensibilização para que quem vende tenha a noção que um antibiótico em medicina veterinária só deve ser vendido mediante uma prescrição médica, tal como acontece na medicina humana” – Patrícia Poeta
A bióloga adiantou que o INIAV faz parte do One Health Europe Joint Programme que engloba 41 parceiros de 19 países europeus. Por sua vez, Sandra Cavaco acrescentou que “as estruturas one health têm de ser multissectoriais, é preciso haver partilha de dados, canais de comunicação entre setores eficazes e diferentes sistemas de vigilância e métodos de deteção. Queremos ter uma abordagem proativa e fazer a avaliação de rotina aos primeiros sinais”. Os médicos veterinários têm áreas de atuação muito vastas e abrangentes. “A nossa atividade afeta a saúde animal, a saúde humana e a saúde ambiental.” Com a pandemia de Covid-19, aquilo que o cidadão comum se apercebe mais é atualmente a resposta a surtos de doenças emergentes causados por agentes zoonóticos. “O médico veterinário tem aqui um papel reativo: equipas multidisciplinares têm trabalhado, no campo e em conjunto, na resolução da Covid-19”, adiantou.
Como barreiras à implementação de uma coordenação global, a médica veterinária destacou o financiamento, a vontade política, a partilha de informação de forma rotineira, a confiança, a privacidade, as diferenças culturais, os conflitos de interesses e a comunicação. “Temos de nos conhecer e confiar uns nos outros. A privacidade dos dados também deve ser tida em atenção”, assinalou.
Seguiu-se a apresentação de Ricardo Reis dos Santos, biólogo, investigador do Instituto de Saúde Ambiental e do Centro de Bioética da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa que abordou a relação das alterações climáticas e da parasitologia. As alterações climáticas têm trazido parasitas para locais onde antes não existiam. Com estes, vêm também as doenças. Por outro lado, o ser humano move-se mais e entra em locais densamente habitados por animais, o que potencia a transmissão de zoonoses. Estamos a invadir, a ser invadidos, ou ambos? O orador falou das causas do aumento dos gases de efeito de estufa (GEE), como por exemplo, o aumento da temperatura, a diminuição da precipitação, o aumento de eventos meteorológicos extremos, a acidificação dos oceanos, entre outros.
“Devemos manter um espírito científico, curioso, que nos faça intervir mais precocemente” – Filipa Ceia, ISPUP
Referindo-se concretamente ao aumento da temperatura que tem vindo a acontecer sucessivamente, referiu que “o planeta está hoje 1,2 graus mais quente do que estava em 1850”. Surgem depois eventos como seca, incêndios, desertificação e ondas de calor. “Recentemente, vivemos uma onda de calor com impacto significativo, em particular em França, em 2019 (em que os termómetros chegaram aos 45,9 graus). Ainda hoje registamos recordes e o mês de novembro foi aquele que registou as temperaturas mais altas desde que há memória. Estamos quase a atingir o limite máximo do Acordo de Paris”, salientou, abordando metas mais positivas ou pessimistas sobre o futuro aquecimento global onde se pode registar um acréscimo de temperatura que pode ir de 1,2 a oito graus excedentes. Ricardo Santos apontou cenários e expectativas destes eventos atmosféricos para os próximos anos e as implicações – a vários níveis e preocupantes – para o bem-estar animal.
Como aplicar transformar este conceito em boas práticas clínicas?
Na mesa redonda da tarde, Luís Montenegro começou por referir que o conceito de one health teve especial destaque no Congresso Montenegro deste ano, realizado em fevereiro, como habitualmente, e adiantou que a próxima edição, a decorrer ainda em data a assinalar conforme a pandemia evoluir, voltará a debater o tema. “Os médicos veterinários têm de se fazer ouvir e contribuir para a humanidade. Há que fazer ver à sociedade que é preciso investir mais no conceito de uma só saúde”, explicou o médico veterinário Luís Montenegro. O diretor clínico do Hospital Referência Montenegro referiu ainda que a equipa percebeu que tinha de criar ferramentas para promover este conceito de one health e isso passa por ter melhores práticas e ser mais competitivo.
“A formação da população em geral e a educação dos mais novos são tão mais importantes como a formação dos novos médicos veterinários” – Andrea Cara de Anjo, DGAV
“Devemos manter um espírito científico e curioso, que nos faça intervir precocemente. Temos um papel enquanto médicos veterinários na saúde dos tutores pois ao intervirmos na saúde do animal vamos ter a mesma intervenção na saúde dos tutores”, referiu Filipa Ceia, investigadora do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, destacando a importância da formação e do conhecimento como armas de intervenção nesta área que “é vasta e preponderante”.
Patrícia Poeta, coordenadora do MicroART- Microbiology and Antibiotic Resistance Team e responsável pelo Laboratório de Microbiologia Médica da UTAD e especialista europeia em microbiologia veterinária alertou para a venda de antibióticos pelas farmácias sem a devida prescrição. “Deve haver uma sensibilização para que quem vende tenha a noção que um antibiótico em medicina veterinária só deve ser vendido mediante uma prescrição médica, tal como acontece na medicina humana. Também o dono do animal só deve adquirir o antibiótico se o mesmo for devidamente recomendado e prescrito pelo médico do seu animal.”
Miguel Quaresma acrescentou que “tem que haver um controlo muito maior da venda descuidada desses antibióticos” e que a Associação Portuguesa de Buiatria, que preside, tem tido o cuidado de apostar cada vez mais nas formas de promoção de saúde dos animais. Também para o responsável é preocupante a questão da venda de antibióticos sem critério e que contribui para o aumento das resistências microbianas.
“Os médicos veterinários têm de se fazer ouvir e contribuir para a humanidade” – Luís Montenegro
O médico veterinário George Stilwell participou na conferência enquanto membro do Conselho Diretivo da Ordem dos Médicos Veterinários (OMV) e partilhou algumas medidas futuras da OMV para enquadrar este conceito de one health. E isso passa por aprovar o ato médico-veterinário para que a própria fiscalização seja bem clara, no sentido de quem utilize antibióticos indevidamente seja identificado e punido judicialmente. “Queremos promover a contratação de médicos veterinários municipais que são o garante da obtenção de boas práticas, a nível local e continuar o diálogo com os outros parceiros, nomeadamente a DGS e a DGAV.” Por outro lado, fazer garantir a formação básica e contínua nestas áreas. “Gostávamos que os colegas fossem mais participativos na OMV e está na altura de os mais novos serem mais participativos e construtivos no que respeita às críticas que fazem”, concluiu.
O médico veterinário explicou ainda que “o público ainda não sabe bem quais são todas as valências dos médicos veterinários e não reconhece a panóplia dos médicos veterinários como o garante de toda a cadeia de valor.” A opinião foi partilhada pela médica veterinária Andrea Cara de Anjo, em representação da DGAV, que referiu o plano de vigilância da DGAV que permita ser um indicador das intervenções dos médicos veterinários em termos médicos e técnicos. “A formação da população em geral e a educação dos mais novos são tão mais importantes como a formação dos novos médicos veterinários”, salientou como medida prioritária para obtenção de resultados a longo prazo.
“Gostávamos que os colegas fossem mais participativos na OMV e está na altura de os mais novos serem mais participativos e construtivos no que respeita às críticas que fazem” – George Stilwell, OMV
Amanhã, [10 de dezembro], a partir das 14h00, realiza-se a segunda parte desta conferência dedicada a temas como o papel da prevenção e da fidelização dos clientes, o papel estratégico da união dos veterinários e da melhoria dos processos de gestão no crescimento sustentável dos CAMV’s e a saúde mental que assume um papel ainda mais importante em ano de pandemia.
– Não perca a reportagem alargada das Conferências Veterinária Atual na edição de janeiro da revista.