O canabidiol, também conhecido por CBD, é apenas um dos diversos compostos canabinoides da Cannabis sativa e as suas aplicações terapêuticas na medicina humana já são amplamente reconhecidas. O composto não causa efeitos psicoativos ou dependência – ao contrário do delta-9-tetrahydrocannabinol (THC), que confere à canábis as suas propriedades psicoativas – e é muito procurado na forma de óleo para tratar os mais diversos sintomas, inclusive na medicina veterinária. Mas, se são tão conhecidos os seus benefícios, porque tarda em chegar ao mercado português?
Um relatório publicado em 2017 pela Organização Mundial de Saúde (Cannabidiol Pre-Review Report – Expert Committee on Drug Dependence) revela que, no seu estado puro, o canabidiol (CDB) “é seguro” e “parece ser bem tolerado, tanto no tratamento de pessoas como no tratamento de animais”, mas os seus benefícios são mais conhecidos na medicina humana, na qual já se usa este composto há algum tempo com efeitos anti-náuseas e de estimulação de apetite em pacientes oncológicos, na redução da ansiedade e no controlo da dor.
Segundo estimativas do Brightfield Group, publicadas recentemente pela BBC, a indústria de produtos de CBD deverá atingir um valor de 5 mil milhões de euros (cerca de 5,7 mil milhões de dólares) em 2019 e de 21,1 mil milhões de euros (cerca de 23,7 mil milhões de dólares) até 2023, só nos EUA. Ora, em 2018, nos EUA, o mercado de produtos de CBD arrecadou uma receita de 553,8 milhões de euros (620 milhões de dólares), o que significa que, para atingir as receitas de 21,1 mil milhões de euros estimadas pela consultora Brightfield até 2023, o mercado deverá crescer a uma taxa anual de 107%.
De óleo vaporizador a creme para alívio da dor, adesivos, gomas, doces em formato de ursinhos e cápsulas e compostos, o CBD já ganhou tanta popularidade que são cada vez mais os pacientes que recorrem ao produto para o alívio de sintomas das mais variadas doenças, desde dores musculares, ansiedade, artrite, epilepsia e transtorno de stresse pós-traumático.
Também Carla Dias, professora e hoje presidente do Observatório Português de Canábis Medicinal (OPCM), viu no óleo de CBD uma solução quando a sua filha Isa foi diagnosticada com epilepsia refratária, com um ano de idade. Com apenas dez meses, a menina teve uma febre inexplicável e foi diagnosticada com F.I.R.E.S. (febrile infection-related epilepsy syndrome), uma síndrome rara que deu origem à epilepsia refratária.
O que podemos aprender com a medicina humana?
“A minha filha tinha muitos espasmos, com cerca de cinco crises por dia, essencialmente durante o sono, o que a privava de dormir […]. Durante o dia queria trabalhar com ela nas terapias, mas não conseguia porque ela estava cheia de sono. Quando comecei a dar-lhe óleo de CBD vi resultados de forma imediata. Logo à primeira gota, vi uma redução das mioclonias [uma contração breve, em onda, de um músculo ou grupo de músculos], que ela tinha frequentemente acordada e a dormir. Deixou de ter essas mioclonias de forma instantânea. Com apenas uma gota por dia, durante 15 dias, não teve crises, nem acordada nem a dormir. Isto permitiu que ela estivesse mais acordada durante o dia e que os estímulos das terapias que eu lhe proporcionava funcionassem melhor. Se o cérebro dela está mais estabilizado, ela também aprende melhor”, conta Carla Dias, que ouviu falar do óleo de CBD pela primeira vez num programa de televisão em que se contava a história de uma menina com um problema semelhante ao da sua filha.
Depressa procurou informar-se sobre a solução e, apesar da pouca informação disponível nos canais tradicionais, nomeadamente através de órgãos do SNS, decidiu experimentar a terapêutica com a sua filha.
“Comecei a dar-lhe óleo de CBD quando ela tinha um ano. Neste momento a Isa tem três anos. No ano em que lhe introduzi CBD, ela desenvolveu-se mais do que no ano anterior. Começou a segurar a cabeça, a equilibrar o tronco, o olhar dela deixou de estar tão fixado no teto e está mais dirigido. Começou a esboçar sorrisos, a reagir mais ao que se passa à volta, nomeadamente aos movimentos e ao som…O CBD permitiu que isto acontecesse porque o cérebro estava mais estabilizado e as terapias começaram a funcionar”, defende.
Contudo, após a aprovação da legislação que regulamenta a utilização de canábis para fins medicinais em Portugal, em janeiro de 2019, desapareceram do mercado português todos os óleos de CBD (canabidiol) de que Isa e muitos outros pacientes necessitavam. De acordo com a legislação em vigor, estes produtos carecem, agora, de uma autorização de colocação no mercado (ACM) por parte do Infarmed, uma vez que são utilizados com fins terapêuticos e só podem ser utilizados segundo prescrição médica e nas indicações terapêuticas aprovadas pelo Infarmed.
Em declarações à VETERINÁRIA ATUAL, o Infarmed justifica a ausência destes produtos no mercado com o facto de as empresas não estarem a apresentar pedidos de autorização de colocação no mercado. De acordo com esta entidade, desde que o Decreto-Lei n.º 8/2019 entrou em vigor, só foram submetidos dois pedidos de ACM para produtos à base de canábis, “ambos em avaliação”.
Como até à data da publicação da legislação estes produtos eram considerados suplementos alimentares, Carla Dias decidiu inquirir a Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) em relação à repentina ausência dos óleos de CBD das lojas nacionais.
“A DGAV alega que os produtos que existiam anteriormente à publicação da regulamentação eram ilegais. Mas isso não me diz respeito. Eles estavam à venda e eu comprei e agora não consigo comprar. Assim que a lei saiu os suplementos deixaram de estar à venda. Estamos a falar de suplementos que tinham canabidiol a 10, 15 ou 20%…E porque o canabidiol ou a canábis medicinal passou a ser legislada e tem fins terapêuticos, então tem de ser regulamentada como sendo um medicamento, uma preparação ou uma substância e, por isso, foi retirada do mercado. E agora, criou-se um oportunismo por parte de algumas empresas a tentar vender com o nome ‘canábis’ produtos que não são canábis. São suplementos, que terão as suas propriedades, mas que não têm canabinoides em quantidades que sejam terapêuticas. Não são canábis medicinal. E o consumidor ou o paciente não têm conhecimentos suficientes para distinguir o que é um óleo de sementes de cânhamo de um óleo de CBD. O óleo de sementes de cânhamo tem canabinoides, mas em quantidades residuais e não em quantidades suficientes para que seja terapêutico. Se tiver, não pode ser vendido porque há uma regulamentação que saiu e que pede que se obedeça a determinadas regras”, explica ainda.
“Para que a lei funcionasse em pleno era preciso termos produtos na farmácia, que os médicos possam prescrever e acompanhar. Esse era o meu maior desejo”, Carla Dias, OPCM
Apesar deste novo quadro regulatório, a verdade é que basta fazer uma pesquisa na Internet para perceber que a compra de óleo de CBD está à distância de um clique, o que tem permitido aos pacientes portugueses que já o compravam continuar a comprar.
“Os consumidores que compravam numa loja física passaram a comprar através da Internet. O Observatório Espanhol [para a canábis medicinal], que já existe há algum tempo, reuniu uma verba e analisou os óleos de CBD disponíveis no mercado e publicou uma lista daqueles que considerou os melhores. Esses óleos estão disponíveis na Internet e nós podemos comprá-los. Vêm de Itália, da Holanda, da Suíça, etc; e chegam cá [a Portugal] à nossa caixa de correio em perfeitas condições”, revela ainda Carla Dias, que considera que esta não é a solução ideal para os pacientes.
OPCM pede mais formação sobre substâncias à base de canábis medicinal
“O problema é que nós continuamos a comprar, continuamos a usar tal qual como antes, mas não temos médicos para acompanhar. Os médicos só prescrevem o que está nas farmácias e não vão acompanhar um óleo que num lote é uma coisa e que no lote seguinte pode ser outra. Não há médicos que queiram acompanhar sem esta garantia, e na área da pediatria, então, não há mesmo. Há um ou outro que devido à experiência que tem com os seus pacientes vai arriscando, mas são muito poucos. Temos de ter produto no mercado para que os médicos o possam prescrever. Os médicos precisam de ter uma bula, um protocolo para seguir e com estes óleos [comprados pela Internet] não há nada disso”, acrescenta.
“Eu gostava que a lei funcionasse. E para que a lei funcionasse em pleno era preciso termos produtos na farmácia, que os médicos possam prescrever e acompanhar. Esse era o meu maior desejo”, conclui.
E foi precisamente para acelerar este processo que, em abril de 2019, Carla Dias decidiu juntar-se a um grupo de outras pessoas para criar o Observatório Português de Canábis Medicinal, ao qual hoje preside.
A missão da organização passa por promover o conhecimento sobre as propriedades e usos terapêuticos da planta Cannabis sativa junto dos profissionais de saúde, pacientes, indústria e entidades reguladoras. A associação conta com um conselho consultivo constituído por investigadores, médicos, biólogos, psicólogos e juristas, e em agosto de 2019 anunciou que quer reunir verbas para dar formação aos médicos sobre a prescrição de medicamentos, preparações e substâncias à base de canábis medicinal.
O OPCM não conseguiu ainda reunir dados sobre a utilização de canábis medicinal e óleo de CBD na medicina veterinária em Portugal, mas a VETERINÁRIA ATUAL contactou as entidades competentes para saber qual o quadro regulatório previsto para a medicina veterinária.
‘Ping-pong’ de responsabilidades
Depois de contactarmos a DGAV, a resposta que obtivemos, por e-mail, foi que “não existe legislação que permita a colocação de canábis/CBD no mercado nacional, assim como se encontra excluída a utilização especial de acordo com a alínea 1 b) i) do artigo 78.º do Decreto-lei 314/2009, de 28 de outubro. O Decreto Regulamentar n.º 61/94, de 12 de outubro, na versão alterada pelo Decreto-Lei n.º 8/2019, de 15 de janeiro, regulamenta a utilização de medicamentos, preparações e substâncias à base da planta da canábis para fins medicinais. O Decreto Regulamentar n.º 61/94, de 12 de outubro, estabelece as regras relativas ao controlo do mercado lícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, compreendidas nas tabelas do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro. Estabelece o artigo 5.º deste diploma legal que compete ao presidente do Infarmed – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I. P., proferir os despachos de autorização, revogação ou suspensão das atividades de cultivo, produção, fabrico, emprego, comércio, distribuição, importação, exportação, introdução, expedição, trânsito ou detenção a qualquer título e o uso de plantas, substâncias e preparações compreendidas no Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro”.
“Relativamente a pedidos de colocação no mercado de produtos à base da planta de canábis para fins medicinais, apenas foram submetidos dois pedidos ao Infarmed que, ainda, se encontram em avaliação”, Infarmed
Por e-mail, o Infarmed descartou-se, no entanto, de responsabilidades no que diz respeito à regulação de medicamentos ou outros produtos de saúde de uso veterinário, referindo que no que diz respeito à colocação no mercado de medicamentos ou de outros produtos de saúde, “a competência para a sua autorização e regulação é do Infarmed no que se refere ao uso humano e da DGAV no que se refere aos de uso veterinário”.
A Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde disse, de resto, que “neste quadro, o Infarmed, I.P. apenas autoriza a colocação no mercado de produtos à base da planta da canábis para fins medicinais, ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.º 8/2019, de 15 de janeiro, e apenas detém competências relativamente aos produtos colocados no mercado para fins medicinais, não regulando os produtos terapêuticos de utilização veterinária, que são da competência do Ministério da Agricultura [ao qual pertence a DGAV]”.
Confrontado pela VETERINÁRIA ATUAL com esta posição do Infarmed, Fernando Bernardo, diretor-geral da DGAV, esclareceu mais uma vez que “para se compreender o que envolve a autorização de medicamentos quer para uso humano ou veterinário, é necessário entender qual a legislação aplicável, nomeadamente as regras relativas ao controlo do mercado lícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas e informação sobre a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas”.
Além disso, explicou que o Decreto Regulamentar n.º 61/94, de 12 de outubro, “veio estabelecer as regras relativas ao controlo do mercado lícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas compreendidas nas tabelas do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.”
Ora, lendo o artigo 5.º do Decreto Regulamentar, explica Fernando Bernardo, ficamos a saber que “compete ao presidente do Infarmed – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I. P., proferir os despachos de autorização, revogação ou suspensão das atividades de cultivo, a produção, o fabrico, o emprego, o comércio, a distribuição, a importação, a exportação, a introdução, a expedição, o trânsito, a detenção a qualquer título e o uso de plantas, substâncias e preparações compreendidas no Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, onde se incluem, na Tabela I-C: Canábis – folhas e sumidades floridas ou frutificadas da planta Cannabis sativa L. da qual não se tenha extraído a resina, qualquer que seja a designação que se lhe dê; Canábis, resina de – resina separada, em bruto ou purificada, obtida a partir da planta Cannabis; Canábis, óleo de – óleo separado, em bruto ou purificado, obtido a partir da planta Cannabis; e Cannabis – sementes não destinadas a sementeira da planta Canábis sativa L”.
“Consideram-se inscritos nesta tabela todos os sais destes compostos, desde que a sua existência seja possível. Com efeito, de acordo com o n.º 2 do artigo 5.º, as autorizações só são concedidas se fundamentadas nas necessidades do País, dando prevalência aos interesses de ordem médica, médico-veterinária, científica ou didática. A autorização de introdução no mercado de medicamentos veterinários contendo os compostos acima descritos não é permitida, uma vez que não se encontra estabelecida a necessidade médico-veterinária”, sublinhou ainda Fernando Bernardo à VETERINÁRIA ATUAL.
O diretor-geral da DGAV concluiu referindo que, “no Decreto-Lei n.º 8/2019 de 15 de janeiro, não existe referência a diplomas relativos a medicamentos veterinários”, disse Fernando Bernardo.
“Resumindo, a questão não se cinge ao procedimento de autorização de um qualquer medicamento veterinário, mas ao facto de estarmos perante substâncias que têm efeitos psicotrópicos que, a serem usados como medicamentos veterinários, carecem de autorizações, cuja competência é indiscutivelmente do Infarmed, nos termos da legislação atualmente em vigor.”
Quais os benefícios em pacientes veterinários?
Mas, apesar de a legislação em vigor indicar que “não se encontra estabelecida a necessidade médico-veterinária” de produtos como o óleo de CBD, a verdade é que a sua utilização já não é novidade em alguns países e pode trazer vários benefícios, de acordo com os profissionais do setor.
Bernardo Aragão Soares, médico veterinário e animal health advisor da UP Partner, explicou que, apesar de “a grande maioria dos estudos realizados em animais até ao momento se focarem na espécie canina”, sabe-se já que “o óleo de CBD tem um desempenho positivo na supressão de convulsões, assim como estimula o apetite, tem efeitos anti-inflamatórios, no alívio da ansiedade e, possivelmente, terá efeitos anticancerígenos”.
Diz, no entanto, que “é importante realçar que o conhecimento científico acerca deste tema ainda se encontra num estado embrionário, pelo que os estudos que menciono são ainda insuficientes para comprovar de forma definitiva estes efeitos”. Apesar disso, nos EUA, conta, esta é uma indústria em crescimento. “O tipo de produtos que se podem encontrar com maior frequência é o óleo [de CBD] propriamente dito, já que é mais rapidamente absorvido e pode ser diretamente aplicado na ração ou até debaixo da língua. Existem outros, como géis e loções de aplicação tópica, chewables (como snacks ou biscoitos) e até mesmo cápsulas ou comprimidos”, acrescenta.
Já Someia Umarji, diretora clínica do CAMV ZenVet e médica veterinária que se tem dedicado a estudar este tema, esclarece que o óleo de CBD usado para fins medicinais em humanos é igual ao usado em animais, referindo que “a molécula tem os mesmos efeitos nos mamíferos e na maioria das aves. Os mecanismos de ação são conhecidos e atualmente explicados em diversas publicações veterinárias internacionais”.
Além disso, a médica veterinária conta que, internacionalmente, há cada vez mais médicos veterinários a subscreverem óleo de CBD como terapêutica. “Por exemplo, nos Estados Unidos da América, a legislação passou recentemente a referir claramente a possibilidade do uso de cannabis terapêutico (não apenas óleo de CBD) em alguns estados e mediante autorização prévia (licença) concedida a médicos veterinários que a solicitem e para a qual sejam formados”, revela.
“Existem outros médicos veterinários em países europeus, como é o caso do Reino Unido, e na América do Sul, que utilizam a molécula para benefício terapêutico dos pacientes. É de referir que existem fóruns internacionais veterinários de discussão do uso do CBD, nos quais se pode perceber a quantidade de informação já reunida sobre doses e indicações terapêuticas. Esses fóruns surgem da crescente necessidade de os médicos veterinários poderem entender as indicações da molécula, porque uma realidade comum a todos os países é que o tutor é maioritariamente o decisor sobre a administração do CBD ao seu animal. O motivo pelo qual isto sucede, e Portugal não é exceção, é a necessidade de encontrar soluções (não invasivas e sem contraindicações) para questões como a dor crónica e todas as manifestações que esta pode desencadear, como a anorexia, a apatia, a prostração, a automutilação e mesmo a agressividade”, explica a médica veterinária.
A médica veterinária acrescenta ainda não ter dúvidas dos benefícios do CBD como terapêutica na medicina veterinária, explicando, no entanto, que “os efeitos estão dependentes da composição do óleo de CBD utilizado.”
“Os óleos podem ser puros e apenas conter CBD ou podem ter outros tipos de canabinoides e mesmo flavonoides (que possuem também efeitos terapêuticos). Além do CBD, pode estar presente o seu percursor, o CBDA, CBN, CBG e CBDV. No corpo, humano e dos animais, existem recetores (detetados na maioria dos órgãos) para estas moléculas, que fazem parte do sistema endocanabinoide. São conhecidos dois tipos de recetores CB1 (ligados ao sistema nervoso central e periférico) e CB2 (ligados ao sistema imunitário). O CBDA é um inibidor de COX-2, atuando como anti-inflamatório; tem também efeito antiemético”, afirma Someia Umarji.
A médica acrescenta ainda mais efeitos terapêuticos benéficos destes compostos: “O CBN é derivado do THC, mas não possui propriedades psicoativas. Os estudos relativamente a esta molécula indicam que é um poderoso sedativo quando comparado com drogas como o diazepam. Tem também um efeito positivo no crescimento de novo tecido ósseo. O CBG é uma molécula que se julga responsável pelo aumento dos níveis de dopamina auxiliando com a regulação do sono, apetite e ansiedade. Um estudo recente, relativo a cancro colorretal, aponta esta molécula como um potencial inibidor no crescimento de células cancerígenas. Também no que diz respeito a IBD e patologias vesicais existe evidência de atuação favorável. O CBG tem ainda propriedades antibacterianas, tendo sido demonstrado que a aplicação tópica em infeções MRSA destrói a presença destas. O CBC interage com recetores que estão relacionados com a perceção de dor indicando que pode ser útil no tratamento de osteoartrite, por exemplo. O CBDV é o composto a que se atribui o efeito ante epileptiforme, entre outros relacionados com patologias de SNC. Existe já um pedido de patente por uma farmacêutica europeia para o uso desta molécula no tratamento de convulsões por reduzir a sua intensidade, duração e eventualmente prevenir que a convulsão ocorra”, esclarece.
“Com esta breve descrição, podemos demonstrar que o que genericamente é considerado óleo de CBD pode, na realidade, ter composições e proporções diferentes de compostos, o que modifica a sua indicação terapêutica. Além disso, de facto podemos auxiliar no tratamento de diversas condições desde que seja entendido o mecanismo de ação e cada patologia ao pormenor”, acrescenta.
A médica veterinária confessa ainda não entender a falta de esclarecimentos sobre esta matéria por parte das entidades competentes do País, já que nem a DGAV nem o Infarmed se entendem quanto à natureza do produto.
“A autorização de introdução no mercado de medicamentos veterinários contendo estes compostos não é permitida uma vez que não se encontra estabelecida a necessidade médico-veterinária”, DGAV
Someia Umarji diz que sobre a questão da classificação do CBD – como produto médico, alimento ou suplemento alimentar: “A DGAV é o órgão que regulamenta a nível nacional a classificação de suplemento alimentar, não o tendo emitido para o CBD, sendo como tal considerada ilegal a sua comercialização. O Infarmed é o órgão que regulamenta os medicamentos e, neste momento, na legislação portuguesa está apenas contemplado um medicamento de nome Sativex, que contém THC e CBD, com indicação para o tratamento de pacientes humanos com esclerose múltipla mediante diversos critérios de indicação terapêutica. No âmbito europeu, a informação obtida é de que cada país é independente na classificação e respetiva autorização que emite sobre o CBD.”
Apesar disso, “o óleo de CBD pode ser adquirido por compra através da Internet com origem em países europeus. Existem também dois produtos comercializados especificamente para o mercado animal, sob a forma de suplementos: o Evexia, da Kimipharma, e o Anibidiol, da Virbac. Tendo em conta a legislação atual, revista em janeiro de 2019, pedi um esclarecimento à DGAV sobre a possibilidade de utilização de óleo de CBD ao invés das apresentações comercializadas dos produtos referidos (já que se pode adquirir o óleo por compra online), e a resposta foi que ambos não possuem autorização de comercialização no mercado português e que o óleo de CBD não se enquadra como suplemento alimentar, nem medicamento para uso veterinário. Assim sendo, a resposta à questão ‘Existem produtos de CBD com fins terapêuticos para animais?’ é: existir existem, mas não são legais”, conta ainda.
Someia Umarji defende ainda que, devido “à possibilidade de obtenção de informação mais ou menos credível online” e “à possibilidade de aquisição pela mesma via destas substâncias”, “seria benéfico para todos regular a substância e decidir de forma categórica e definitiva sobre a sua posição legal”.
“É ou não um suplemento alimentar? Se sim, então assumimos que apesar de ter efeitos benéficos não substitui uma terapêutica médica. Se a resposta for no sentido de que é um medicamento (mesmo que para isso sejam necessários realizar mais estudos), então ele passa a ser prescrito única e exclusivamente por médicos veterinários (o caso do panorama da saúde animal)”, conclui.
CBD para animais em explosão no mercado norte-americano Texto: Ana Rita Guerra Entre bancadas com cremes de beleza e pomadas medicinais à base de canábis, nos eventos dedicados à planta recentemente legalizada em boa parte dos Estados Unidos, é sempre possível encontrar produtos para animais de estimação. A maioria é apresentada no formato de gomas, biscoitos ou óleos com canabidiol (CBD) e prometem tratar ansiedade, ajudar com dores crónicas e até abrandar o declínio cognitivo com o avançar da idade. As guloseimas são para os animais, mas o apetite dos donos é que é estratosférico: de acordo com o Brightfield Group, as vendas destes produtos vão quintuplicar para 358 milhões de euros até 2023. Isto significa que CBD para animais representará 10% do mercado total nos EUA. A ideia é que os benefícios da planta para os humanos sejam extensíveis aos animais, não apenas gatos e cães, mas também pássaros, coelhos, cavalos e até répteis, já que todos possuem os recetores canabinóides que são “ativados” pela canábis. Uma das aplicações mais comuns é o uso de CBD para acalmar os animais que têm reações extremas a sons estrondosos, como trovões e fogo de artifício, mas não só. “A perceção é definitivamente que ajuda”, diz à VETERINÁRIA ATUAL a norte-americana Katherine Kramer, diretora da unidade de cães e gatos no Vancouver Animal Wellness Hospital. A médica começou a trabalhar com CBD há oito anos, quando o dono de um animal num caso desesperado sugeriu a substância. “Sentimos que resultou muito bem e por isso começámos a aplicar a outros casos de cuidados paliativos”, explica a veterinária. “Ao longo dos anos, posso dizer que ajuda com dor crónica, artrite, pancreatite, dores provocadas por cancro, ajuda a minimizar os efeitos secundários da quimioterapia, é bom para casos de convulsões e ansiedade”, descreve. A maioria dos estudos disponíveis debruça-se sobre cães e ratos de laboratório, com resultados encorajadores. Um estudo recente da Universidade Estadual do Colorado concluiu que o CBD é eficaz na regulação de epilepsia canina, com 89% dos pacientes a demonstrarem melhorias. A pesquisa foi publicada em 2019 e os resultados descritos como “prometedores e excitantes” pela neurologista Stephanie McGrath, do Hospital Veterinário Universitário James L. Voss. Em 2018, um estudo da Universidade de Cornell demonstrou a redução da dor e aumento na atividade em 80% dos cães com osteoartrite que receberam doses de CBD. “Como temos tantos donos de animais a dizerem que ajuda e que tentaram outras coisas e nada tinha funcionado, isso está a obrigar a comunidade veterinária a fazer pesquisa”, explica Katherine Kramer. “Tem havido cada vez mais estudos no último ano em animais de companhia e os resultados são muito otimistas.” No entanto, o interesse dos consumidores está a avançar mais rapidamente do que a ciência e a legislação. O cultivo de cânhamo para extração de CBD é legal em todo o país e o consumo recreativo de marijuana foi aprovado em 11 estados, com utilização medicinal legal em 33. No entanto, há restrições no cultivo, comercialização e aplicação, havendo ainda escassez de estudos e ensaios clínicos para um quadro regulatório satisfatório. Foi por isso que a FDA (Food and Drug Administration) emitiu um aviso em dezembro que gerou ondas de choque. O documento indica que “algumas empresas estão a promover produtos que contêm canábis e compostos derivados da canábis de formas que infringem o Federal Food, Drug and Cosmetic Act e que podem pôr em risco a saúde e segurança dos consumidores.” Entre 15 empresas que receberam um aviso por ilegalidades na comercialização de produtos com CBD, em novembro, 14 têm linhas para animais de estimação. A Koi Naturals vende um spray e gomas com CBD para animais, a Mr. Pink Collections vende óleos com sabor a bacon e a Whole Leaf Organics tem uma gama que apelida de “perfeita” para cães que sofrem de cancro. Tais alegações, acusa a FDA, são inapropriadas porque a substância não foi ainda aprovada para tratamento clínico de animais. “Com base na falta de informação científica que suporte a segurança do CBD nos alimentos, a FDA indica hoje que não pode concluir que o CBD seja reconhecido como seguro de forma geral entre especialistas qualificados para uso em comida para humanos ou animais”, lê-se no documento. Tal posição é demasiado rígida, afirma Darcy Bomford, CEO da True Leaf, empresa de canábis com uma divisão dedicada a animais. O executivo diz que a administração foi dura ao declarar que não há provas de que o CBD não é prejudicial. “Eu discordo, penso que há medicamentos livres de receita que são muito mais nocivos que o CBD”, diz à VETERINÁRIA ATUAL. “Mas penso que há empresas que são maus players na indústria e estão a fazer alegações que não deviam estar a fazer”, sublinha. “Se alguém alega que um produto faz isto e aquilo, que previne inflamação, por exemplo, tem de ser verdade. Será bom para a indústria ter mais escrutínio.” No caso da empresa, que está presente no Canadá, Estados Unidos e 17 mercados europeus, os produtos são certificados pela NASC (National Animal Supplement Council), que garante que as fórmulas têm qualidade e que não são feitas alegações fora do âmbito de um suplemento para animais. Há outras marcas que tomaram o mesmo cuidado, como a Green Coast Pet, que tem óleos de cânhamo para cães, gatos e cavalos com canabinoides certificados pela NASC, e a Phyto Animal Health, que comercializa um óleo CBD para misturar na comida dos animais também certificado. Mas não são a maioria. “Fomos a um evento da indústria no verão de 2019 e havia mais de 100 empresas a fazer CBD para animais de estimação”, conta Darcy Bomford. “Estou na indústria há 30 anos e nunca vi um ingrediente individual criar tanto entusiasmo e receber tanto interesse no mercado. É incrível. Há tanta gente que está à procura disto.” Ao mesmo tempo, muitas pessoas estão a fazer perguntas. “Os consumidores querem acreditar numa empresa que está a fazer a coisa certa, com as doses apropriadas, sem alegações malucas, e que estão a testar os ingredientes para garantir que são o que dizem ser.” Tal como Bomford, a médica Katherine Kramer, que trabalha com a True Leaf Pet desde 2018 para controlo de qualidade nas fórmulas, reconhece que o mercado está imparável. “O CBD é tão popular neste momento que toda a gente está a tentar lançar produtos no mercado antes de a legislação estar terminada”, refere, mencionando estudos que detetaram disparidades entre os rótulos, a composição e as alegações. Nalguns casos tinham demasiado CBD, noutros a menos e noutros zero. Kramer diz que é importante que os consumidores consultem primeiro os seus veterinários. A médica está a ultimar um ensaio clínico com a True Leaf Pet, que será conduzido no início deste ano. O seu conselho para os médicos e profissionais veterinários é olharem para o sistema endocanabinoide, “um dos maiores sistemas neuromoduladores” no corpo através do qual se podem explorar novas formas de tratar a dor e as doenças. “Há estudos promissores em animais de laboratório e em pessoas sobre este tratamento [com CBD]. Penso que iremos descobrir que tem um efeito sinergético.”