É uma técnica que veio revolucionar a prática clínica e que tem suscitado maior interesse dos médicos veterinários. A anestesia locorregional ganhou especial relevância no mundo da analgesia nos últimos cinco a dez anos e têm surgido cada vez mais formas de aumentar a sua eficácia e a duração. Quem a experimenta, não consegue deixar de treinar e aperfeiçoar. Os animais agradecem.
O crescimento da área de anestesia no nosso País tem sido conseguido à conta da partilha de casos com outros anestesistas em Portugal. É uma área essencial num hospital, daí o reforço do papel dos anestesistas nos CAMV. “Costumo dizer que se existe um ‘nervo’, pode e deve ser bloqueado”, afirma Diogo dos Santos, responsável pelo serviço de anestesia e analgesia no VetOeiras — Hospital Veterinário e professor auxiliar convidado na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (ULHT). O interesse do médico neste tipo de técnicas surgiu da tentativa de resolver problemas que encontrava no seu trabalho diário. “Seguia animais sob imensos fármacos sistémicos em altas doses, por forma a conseguir inibir o estímulo doloroso produzido pela cirurgia, com consequentemente sedações excessivas e efeitos indesejados”, defende. A sua formação foi feita em Espanha e Áustria, mas a aprendizagem é contínua e a evolução, constante. “A curva de aprendizagem é imensa”, garante.
O interesse de David Ferreira, médico veterinário no Hospital Veterinário da Universidade de Évora (HVUE), pela anestesia locorregional remonta ao começo dos anos 2000. “Quando se conhece detalhadamente a anatomia, a prática de técnicas gerais de anestesia locorregional é fácil, pois apenas se administram pequenos volumes de fármacos ou combinações de fármacos anestésicos na região circundante dos nervos, na sua maioria de localização superficial”, explica. Em 2007, concluiu o doutoramento na área de anestesiologia e monitorização anestésica, após um estágio intensivo no bloco de neurocirurgia do Hospital Geral de Santo António, que iniciou em 2003. “Esta formação em anestesiologia de medicina humana permitiu-me o contacto com técnicas anestésicas de vanguarda, entre as quais técnicas avançadas de anestesia locorregional ecoguiada e com estimulação de nervo periférico. Fui aplicando estes conhecimentos à minha prática clínica veterinária, consolidando-os ao longo dos anos.”
O número de profissionais a realizarem técnicas avançadas de anestesia locorregional em Portugal tem vindo a crescer, até porque o ensino universitário também destaca esta técnica, permitindo que “os colegas mais novos cheguem ao mercado de trabalho com uma mentalidade mais aberta para as vantagens destas técnicas, uma vez que já tiveram a oportunidade de contactar com as mesmas durante o seu percurso universitário”, explica o também professor universitário.
Lénio Ribeiro, médico veterinário no Centro Hospitalar Veterinário (CHV), no Porto, e docente na ULHT, garante: “A partir do momento em que se percebe a potencialidade da anestesia locorregional, é impossível voltar atrás porque conseguimos perceber os benefícios para o animal e ao nível de prognóstico. Esta anestesia constitui a única forma de inibir por completo a transmissão do impulso normal que irá ser percebido no sistema nervoso central. E essa é a grande mudança.”
A anestesia locorregional “é a forma mais eficaz, se não única, capaz de inibir a transmissão de um estímulo doloroso até ao córtex cerebral”, garante Diogo dos Santos
Para Amândio Dourado, médico veterinário, responsável pelo serviço de anestesia e cuidados intensivos do Hospital Veterinário do Porto (HVP), “a anestesia locorregional é considerada atualmente como um dos pilares base de analgesia em todos os protocolos anestésicos de medicina humana e a medicina veterinária segue essa tendência”.
Apesar de já termos alguns profissionais “de elevado nível” no que respeita à implementação destas técnicas e que “trabalham em equipas multidisciplinares em ambiente hospitalar”, o profissional de saúde animal diz que há ainda “um longo caminho a percorrer, no que respeita ao número de profissionais e de CAMV que disponibilizam este tipo de serviços”. Depois de começar a utilizar neuroestimuladores, Amândio Dourado passou a recorrer a bloqueios locorregionais ecoguiados por considerar que é a técnica “gold standard para bloquear praticamente todos os nervos do corpo, atualmente”.
Das vantagens às limitações
Existem algumas técnicas mais simples que podem ser aplicadas por um médico veterinário generalista, desde que sejam respeitados todos os seus princípios. No entanto, “a utilização da maioria dos bloqueios locorregionais exige um profissional dedicado a todo o procedimento anestésico e/ou analgésico, com conhecimento das vantagens e desvantagens das várias técnicas e fármacos utilizados e domínio na utilização da ecografia e anatomia para tomar o máximo partido desta modalidade analgésica”, explica Amândio Dourado.
Os resultados são muito dependentes de quem executa a técnica. Mais competências, maior sucesso. “Outra limitação é o facto de alguns anestésicos locais terem um tempo de latência de mais de 30 minutos para produzirem um efeito analgésico eficaz.” Também Diogo dos Santos assinala esta limitação. “Estas técnicas estavam exclusivamente dependentes da duração dos anestésicos locais. Atualmente, têm sido reportados casos de utilização de cateteres perineurais e até interfaciais, que vão permitir resolver esse problema e irão ser uma solução para controlo de dor no pós-operatório”, explica.
O treino é essencial e só assim se vai aprimorando a prática. “Como norma de segurança, é fundamental não administrar os anestésicos locais quando existe alguma pressão no êmbolo da seringa durante a administração, para se evitarem administrações intraneurais. Assim como fazer o refluxo antes da administração, por forma a se evitarem administrações endovenosas dos fármacos anestésicos locais”, alerta David Ferreira.
“A verdade é que nos empurramos uns aos outros. Há união entre os colegas da anestesia e isso permite-nos avançar na especialidade” – Lénio Ribeiro
O maior investimento que um CAMV deve fazer consiste na formação especializada de colaboradores nesta área, porque a grande maioria dos hospitais, assim como algumas clínicas, já dispõem de ecógrafos, que são os únicos equipamentos necessários para a realização de uma anestesia locorregional. Também Diogo dos Santos considera que o maior desafio se concentra na formação de elementos da equipa em anestesia. “A mentalidade de que o cirurgião é quem decide o protocolo anestésico e toma decisões anestésicas enquanto opera é o maior paradigma que a nossa classe deve contrariar. Desta forma, o investimento que deve existir nesta área deve ser nas pessoas e só depois em equipamentos (monitores, ventiladores, ecógrafos, etc.)”, sublinha.
O conhecimento teórico da anatomia e farmacologia é essencial para obter todos os ganhos desta técnica, mas o médico veterinário do VetOeiras considera primordial “haver cada mais colegas que se dediquem à anestesia para poderem ter capacidade de aprender a aplicar”. É que, na sua opinião, a anestesia locorregional é “a forma mais eficaz, se não a única, capaz de inibir a transmissão de um estímulo doloroso até ao córtex cerebral”.
Lénio Ribeiro começou a desenvolver o seu interesse neste tipo de anestesia através do incentivo de colegas e corrobora a opinião de que não é necessário um grande investimento. “O custo associado a esta técnica prende-se com as agulhas, o anestésico e a formação. Em termos de equipamento, muitas clínicas e CAMV em Portugal estão perfeitamente aptos para proceder à anestesia locorregional.” Considerando que a formação é essencial, denota um maior interesse nacional em desenvolver formações à medida desta técnica, sobretudo em congressos de veterinária.
“A medicina não tem fim e acho que a revolução do conhecimento está a dar-se agora. Até a pandemia de covid-19 vai ter implicações no conhecimento, porque temos hoje muito mais webinars, palestras e eventos online”, destaca, fazendo o paralelismo com a oferta existente atualmente em comparação com o que acontecia há duas décadas, quando começou a exercer como médico veterinário.
Para as técnicas ecoguiadas e com recurso a estimulação do nervo periférico, é necessário o investimento no aparelho de ecografia com sonda linear e um estimulador de nervo periférico, com as respetivas agulhas descartáveis, destaca David Ferreira. “Estes equipamentos são bastante dispendiosos, principalmente se a sua aquisição for analisada apenas do ponto de vista da anestesia locorregional. No entanto, há vários CAMV que utilizam o ecógrafo na prática clínica de rotina, podendo otimizar seu uso na prática de anestesia locorregional ecoguiada”, sublinha.
Embora se tenha dado muito ênfase às técnicas avançadas de anestesia locorregional, com recurso a ultrassonografia e estimulação de nervo periférico, estas técnicas devem ser consideradas como “um dos últimos degraus na escada de aprendizagem da anestesia locorregional”, diz o professor da Universidade de Évora. “[…] No primeiro encontra-se o bloqueio do nervo periférico com base no conhecimento da sua localização anatómica, seguido da administração de fármacos anestésicos no canal epidural”, descreve. No seu entender, é necessário respeitar esta escada para a obtenção de uma formação consolidada e com bases sólidas. “Se não se souber a anatomia topográfica dos nervos, músculos e estruturas vasculares, também não se conseguirão identificar com a ultrassonografia.” Para o docente, seria importante haver uma oferta maior de cursos de anestesia locorregional geral.
“De um modo geral, a anestesia locorregional pode ser aplicada a qualquer paciente com segurança, pois as complicações desta técnica estão normalmente associadas a erros por parte do praticante” – David Ferreira
No que respeita aos benefícios deste tipo de anestesia, David Ferreira destaca as seguintes: “Melhor controlo da dor e uma diminuição das concentrações de hipnóticos e analgésicos no período intraoperatório e pós-operatório, contribuindo para uma anestesia segura com mínima depressão das respostas do sistema nervoso autónomo. Dependendo do estado geral do animal a ser anestesiado, poderemos recorrer a anestésicos locais farmacodinamicamente mais seguros, como é o caso da ropivacaína.” No que concerne às limitações deste tipo de anestesia, surgem precisamente com a curva de aprendizagem exigida ao médico veterinário, mas também “com o equipamento disponível e com a quantidade máxima de anestésico local que pode ser administrado em segurança sem que ocorram alterações significativas a nível cardiovascular e do sistema nervoso central”, alerta o médico do HVUE.
Em suma, esta é uma técnica sem paralelo. “Um ato tão simples, como identificar e aplicar um anestésico local no nervo ou conjunto de nervos que inervam determinada região anatómica a ser intervencionada cirurgicamente, tem o potencial de inibir totalmente a transmissão do sinal doloroso até ao cérebro, [o que] é algo que mais nenhum outro tipo de medicação tem a capacidade de fazer totalmente”, defende Amândio Dourado.
As limitações existem, tanto nesta como em outras técnicas. Em medicina, não há práticas infalíveis. “No entanto, esta anestesia é muito segura. Podem existir lesões no nervo se não for bem aplicada, mas a probabilidade é baixa quando nos referimos a anestesia locorregional ecoguiada”, salienta Lénio Ribeiro.
A que pacientes aplicar?
As condicionantes quanto aos pacientes a quem aplicar esta técnica não são complexas. “De um modo geral, a anestesia locorregional pode ser aplicada a qualquer paciente com segurança, pois as complicações desta técnica estão normalmente associadas a erros por parte do praticante. Como exemplos, temos a injeção intraneural, a punção de outras estruturas anatómicas e a injeção endovenosa ou intra-arterial do fármaco anestésico que potenciará a toxicidade cardiovascular e do sistema nervoso central”, alerta David Ferreira.
O sucesso da anestesia locorregional está dependente da seleção da técnica mais adequada para cada procedimento. “Além disso, é muito dependente da perfeita execução da técnica. Ou seja, para que a anestesia regional tenha sucesso, os anestésicos locais devem ser aplicados exatamente no local pretendido. Há determinado tipo de técnicas, por exemplo, a epidural, que não deve ser utilizada em doentes instáveis hemodinamicamente. No geral, há sempre uma solução para poder utilizar um anestésico local”, defende Diogo dos Santos. É raro o caso clínico em que o médico veterinário não recorre a um anestésico local no protocolo. “Acho que quem faz anestesia com anestesia locorregional passa a não querer outra coisa. A estabilidade intra-anestésica, os acordares calmos e o conforto no recobro são incomparavelmente melhores. Não sou só eu a afirmá-lo. A evidência científica cada vez mais o comprova”, destaca.
“Sempre que vamos submeter todo e qualquer paciente a um processo potencialmente doloroso, como é uma intervenção cirúrgica, a anestesia locorregional é uma modalidade que deve ser aplicada” – Amândio Dourado
Ultimamente, a técnica tem ganhado destaque também no controlo da dor crónica, numa vertente mais intervencionista. “Penso ser uma área ainda com muito potencial por explorar e que certamente ajudará muitos dos nossos doentes.” Também o colega de Évora destaca esta potencialidade, “além da diminuição da concentração dos hipnóticos e dos analgésicos intra e pós-operatórios, com excelente controlo de dor e consequente menor depressão das respostas do sistema nervoso autónomo, recuperações pós-operatórias tranquilas, sem dor, mais rápido retorno dos animais ao seu normal comportamento após a cirurgia”.
Quanto ao facto de poder ser aplicada a todo o tipo de pacientes, Amândio Dourado diz que a anestesia locorregional apresenta um menor número de efeitos secundários comparativamente à analgesia sistémica. “Sempre que vamos submeter todo e qualquer paciente a um processo potencialmente doloroso, como é uma intervenção cirúrgica, a anestesia locorregional é uma modalidade que deve ser aplicada. Eu diria que a única contraindicação é a existência de coagulopatias e piodermas generalizadas”, sublinha.
Relativamente aos casos clínicos que acompanha, o médico veterinário do HVP deixou de assistir a taquicardias e a hipertensão associadas ao estímulo cirúrgico, deixou de usar doses altas de anestésico volátil e opióide perioperatório, mas, sobretudo, a grande diferença que nota é no período pós-operatório, no qual assiste a uma qualidade de analgesia bastante superior em comparação com a analgesia sistémica. Assim, os pacientes “toleram muito bem o toque da sutura, estão mais tranquilos e com menos grau de sedação”.
O Grupo de Interesse em Anestesia e Analgesia Veterinária (GIAAV) pertence à Associação Portuguesa de Médicos Veterinários Especialistas em Animais de Companhia (APMVEAC) e foi criado por um conjunto de amigos anestesistas, nomeadamente, Diogo dos Santos, Amândio Dourado, Lénio Ribeiro, Pedro Pinto e Ricardo Felisberto, com o objetivo de criar iniciativas diversas que aumentem o conhecimento sobre estas técnicas. “Sentíamos que havia uma enorme necessidade de formação nesta área e que precisávamos de cativar mais colegas para esta disciplina fundamental. Estamos em crescimento e, neste momento, contamos com cerca de 60 colegas”, explica Diogo dos Santos. “A verdade é que nos empurramos uns aos outros. Há união entre os colegas da anestesia e isso permite-nos avançar na especialidade”, assinala Lénio Ribeiro.
Inovações da indústria
Em maio deste ano, a Dechra lançou uma solução em spray para pulverização de lidocaína – Intubeaze® – que tem como objetivo reduzir a possibilidade de laringoespasmo, uma vez que se facilita o procedimento da intubação. “Especialmente desenhado para gatos, cada pulverização proporciona 2,3 mg de lidocaína, o que permite calcular corretamente a dose total aplicada, especialmente quando se combina com outros procedimentos de anestesia local que incluem lidocaína”, refere Mireia Peña Pla, senior product manager ibérica de produtos farmacológicos para animais de companhia da Dechra.
A segurança dos procedimentos anestésicos é um dos pilares da boa prática clínica. “A intubação endotraqueal permite assegurar o acesso às vias aéreas, melhorando a segurança do procedimento anestésico do paciente, possibilitando a administração de oxigénio e de agentes voláteis, reduzindo a poluição por gases anestésicos na área cirúrgica. Os gatos podem ser difíceis de entubar pelo seu reduzido tamanho e anatomia, mas também porque têm a laringe especialmente sensível, o que pode originar o laringoespasmo”, destaca a responsável.
A Plurivet lançou recentemente o Procamidor Duo®, uma combinação de cloridrato de procaína e tartarato de adrenalina, solução injetável para equinos, bovinos, suínos e ovinos. “Este é mais um medicamento para se juntar a uma ampla gama disponível de anestésicos locais que a Plurivet proporciona a todos os profissionais veterinários e para todas as espécies animais, como o Lidor ® (lidocaína), Mepidor ® (mepivacaína), Procamidor ® (procaína). Com respeito a este último, gostaríamos de realçar que fomos a primeira empresa no mercado nacional a lançar o único princípio ativo legal (procaína) para sua utilização nos animais de produção e, como tal, seguro para o médico veterinário”, explica Nuno do Carmo, médico veterinário e sócio-gerente da empresa.
O objetivo futuro da empresa passa por continuar a ampliar a gama de medicamentos na área de analgesia e anestesia, juntamente com o parceiro Richter Pharma, ajudando assim os veterinários a terem um maior número de soluções disponíveis para os animais de companhia. “Como tal, serão apresentadas novidades, em breve”, garante o responsável.
*Artigo publicado originalmente na edição n.º 142 da revista VETERINÁRIA ATUAL, de outubro de 2020.