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Animais de Companhia

A problemática das raças felinas da “moda”: quando a aparência compromete o bem-estar

International Cat Care

Estima-se que cerca de um em cada três lares portugueses tem pelo menos um gato como animal de companhia. A maioria destes gatos não tem raça definida, sendo comummente designados como gatos Domésticos (de pelo curto ou longo) e frequentemente adotados através dos Centros de Recolha Oficial de Animais (CROA), de abrigos e de outras associações de proteção animal, ou mesmo recolhidos diretamente da rua (prática ainda bastante comum no nosso país). Contudo, uma percentagem significativa dos tutores opta por adquirir exemplares de raça pura, em busca de determinadas características morfológicas da sua preferência.

De entre os aspetos fisionómicos que mais interesse têm gerado nos últimos anos destacam-se os traços físicos neoténicos que fazem com que o gato conserve um aspeto mais “infantil” em idade adulta, o que é percecionado por muitos tutores como mais “amistoso” e “ternurento”. Gatos com esta aparência tendem a ter a cabeça mais arredondada e proporcionalmente maior em relação ao corpo, o nariz pequeno e mais curto, os olhos mais destacados e as orelhas mais pequenas e/ou “dobradas”. Outra característica que tem vindo a ser apreciada por um número cada vez maior de pessoas é a ausência de pelo, seja para evitar a necessidade de escovagem e a acumulação de pelo em casa, pela ideia errada de que estes gatos causam “menos alergias” ou pelo aspeto visual considerado apelativo para alguns. Como consequência, as raças Persa, Exótico, Scottish Fold e Sphynx têm sido muito procuradas, chegando com mais frequência aos nossos consultórios.

 

O grande (e sério) problema é que a par da crescente representatividade destas raças, assistimos ao aumento da incidência das patologias a que estas estão predispostas. Por exemplo, aos Persas e aos Exóticos estão associados frequentemente problemas respiratórios decorrentes da síndrome braquiecefálica obstrutiva das vias áreas (BOAS), caracterizada por estenose das narinas, palato mole alongado, hipoplasia traqueal e eversão dos sacos laríngeos. A estas duas raças estão também associadas condições orais e oculares que requerem cuidados de higiene mais regulares e um maior número de visitas ao médico veterinário assistente. Por um lado, as típicas maloclusões dentárias favorecem a acumulação de tártaro e o trauma oral crónico, predispondo à doença periodontal e à gengivo-estomatite crónica. Por outro, a anatomia particular dos seus olhos, caracterizada por maior exposição ocular e por ocasionais defeitos palpebrais, faz com que quadros de epífora crónica, conjuntivite, queratite, sequestro corneal e até entrópion sejam mais comuns comparativamente com indivíduos de outras raças. Já quando vemos um novo Scottish Fold em consulta, é difícil não pensar de imediato na osteocondrodisplasia, uma doença que resulta em problemas articulares severos e dolorosos e que tem por base uma mutação genética responsável por um anormal desenvolvimento ósseo e cartilagíneo. Outro “mal” desta raça escocesa são as otites recorrentes resultantes de uma conformação auricular que propicia a acumulação de cerúmen e que dificulta a sua eficaz remoção. Nos Sphynx, dada a ausência da barreira natural do pelo e da consequente maior exposição da pele, são mais característicos os sinais clínicos dermatológicos associados a quadros de dermatite seborreica, de infeção cutânea secundária (bacteriana e/ou fúngica) e de reações de hipersensibilidade. Independentemente do problema ou da raça, existe sempre um denominador comum nestes casos: um traço físico com potencial de comprometer significativamente a saúde e o bem-estar do gato. De lembrar que este comprometimento é não só físico como também emocional, já que estas características morfológicas podem afetar a capacidade destes indivíduos de expressarem os comportamentos que lhes são naturais.

Direitos reservados | Reunião dos parceiros internacionais da iCatCare em junho de 2025, em Edimburgo

Tal como a política atual tem sido pautada por movimentos extremistas e radicais, também a felinicultura (particularmente a não controlada) tem sofrido o impacto dessa atração humana por aquilo que é levado ao limite. Dessa forma, assiste-se a uma pressão para acentuar as características raciais mencionadas, agravando os problemas que advêm deste processo de seleção artificial. Decorrente disso, a sociedade acaba muitas vezes por eleger a aparência em detrimento do bem-estar animal, procurando gatos que fisionomicamente correspondem às suas expectativas e desconhecendo (ou preferindo ignorar conhecer) o impacto de tal decisão. Esta questão coloca assim um dilema ético à comunidade médico-veterinária: Como prestar os cuidados de saúde necessários a estes animais sem incentivar a sua criação?

 

A International Cat Care (iCatCare) tem sido uma das organizações que mais tem debatido esta problemática, com o objetivo de informar a sociedade e de incentivar a uma criação mais consciente e responsável que promova uma população felina doméstica mais saudável em todo o mundo. Prova disso são as várias declarações oficiais que tem feito e o material educativo direcionado tanto a profissionais como a tutores que tem publicado regularmente. Para além disso, a sua divisão veterinária (iCatCare Veterinary Society) tem promovido encontros anuais com os parceiros internacionais com este assunto como tópico principal, nos quais o Grupo de Interesse Especial em Medicina Felina (GIEFEL) da Associação Portuguesa de Médicos Veterinários Especialistas em Animais de Companhia (APMVEAC) tem marcado presença na qualidade de representante português. Por ocasião das últimas duas edições do World Feline Congress, elementos dos vários países tiveram a oportunidade de sugerir e discutir estratégias, de âmbito nacional e internacional, para ajudar a minimizar estes problemas de bem-estar felino. Algumas das ações sugeridas pelo GIEFEL foram dar a conhecer publicamente, de forma oficial e inequívoca, a posição da classe médico-veterinária em relação a estas raças; promover uma comunicação consertada, objetiva e devidamente adaptada aos vários setores (médicos veterinários, criadores, indústria e público-geral) que vise aumentar a consciencialização acerca desta problemática; desenvolver ferramentas práticas para ajudar os médicos veterinários na abordagem aos indivíduos destas raças (nomeadamente “árvores de decisão clínica” e algoritmos); e estabelecer maior proximidade com as entidades que reconhecem e regulam a criação de raças puras, de que é exemplo o Clube Português de Felinicultura no nosso país.

Devendo o exercício da nossa profissional se reger sempre pela medicina baseada na evidência, o GIEFEL tem assumido o compromisso de fazer chegar mais conhecimento aos colegas, dinamizando eventos formativos nos quais estas doenças raciais são abordadas. Por esse motivo, convidámos o Dr. Alexandre Daniel (especialista em medicina felina) para, no dia 10 de setembro e em formato webinar, nos falar destas mesmas particularidades raciais. Ainda este ano, teremos também o IX Congresso de Medicina Felina, a decorrer de forma presencial nos dias 15 e 16 de novembro, em Lisboa, durante o qual a Dra. Martha Cannon, o Dr. Rui Máximo e o Dr. Manuel Monzo irão apresentar as recomendações atuais para o maneio das principais doenças cardiovasculares e respiratórias do gato, que, como sabemos, têm uma prevalência particular nas raças puras em destaque neste artigo. Um exemplo é a cardiomiopatia hipertrófica, tantas vezes detetada nestes indivíduos.

 

Por isso, enquanto agentes de bem-estar animal, nós, médicos veterinários, somos os profissionais mais capacitados para promover a consciencialização da sociedade e impulsionar mudanças nas práticas de criação destas raças. Abordando este tema através dos mais variados canais de comunicação, mantendo um diálogo aberto com os criadores e educando os tutores que recorrem aos nossos serviços, podemos todos fazer a diferença em prol do presente e do futuro da espécie felina.

International Cat Care | Comparação da conformação facial entre um gato saudável, um gato com braquicefalia ligeira e um gato com braquicefalia severa (Créditos: Comparação da conformação facial entre um gato saudável, um gato com braquicefalia ligeira e um gato com braquicefalia severa

*Médico veterinário; investigador e doutorando na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro; presidente do Grupo de Interesse Especial em Medicina Felina (GIEFEL) da Associação Portuguesa de Médicos Veterinários Especialistas em Animais de Companhia (APMVEAC)

 

** Artigo de opinião publicado na edição 197, de outubro, da VETERINÁRIA ATUAL

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