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Opinião

A grande “dispositivação” dos animais (não humanos)

iStock  e

O mercado de consumo de dispositivos tecnológicos de monitorização de saúde animal, nomeadamente no segmento de animais de companhia, seguramente irá crescer na casa dos dois dígitos nos próximos anos. Espera-se que em 2027, este mercado de dispositivos usáveis (“wearables”, neologismo que irá aparecer mais vezes no texto) pelos animais de companhia, alcançará vendas de 1 bilião de euros na Europa1. Este segmento de dispositivos, capazes de medir a atividade fisiológica, assim como detetar parâmetros de saúde, diariamente dos animais, tem como espelho reflexo a “dispositivação” que a espécie humana sofreu, ou seja, o amplo acesso a tecnologia para todas as vertentes do dia-a-dia, incluindo a saúde. Diversas start-ups tecnológicas, após anos de investimento e graças aos avanços dos diversos componentes dos futuros dispositivos (software mais avançado, velocidade de transmissão de dados, componentes elétricos mais pequenos, baterias com maior autonomia, etc.) estão agora na mira das grandes empresas mundiais do setor de saúde animal e não só, pela aquisição de produtos no segmento tecnológico para completar as suas gamas de prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças em animais.

E porquê toda esta “prosa-pseudo-entendida-tecnológica” como tema aqui nesta coluna dedicada à saúde animal?

 

Porque esta grande “dispositivação” dos animais (não humanos, porque nós humanos já estamos bem “dispositivados”…) vai mudar a forma como se pratica medicina veterinária em toda as áreas animais, e especialmente de uma forma relacional na área dos animais de companhia.

No início o recurso a tecnologia “wearable” começou pela necessidade de localização de animais, com diversos objetivos: salvamento, rotas de circulação, comportamentos migratórios. Depois passamos para o campo observacional comportamental, agora entramos no campo da monitorização de parâmetros fisiológicos e por extrapolação, na deteção precoce de doença ou indícios de doença. Assim, já temos dispositivos “wearables” e “non-wearables” que permitem a medição de temperatura, monitorização do pulso, traçado eletrocardiográfico, quantificação de comportamento pruriginoso, registo de padrões de marcha e salto, padrões de sono, padrões de stresse em confinamento, avaliação de vinculação entre animais e pessoas, entre outros2.

 

Esta panóplia de dispositivos atuais e vindouros vai contribuir para uma melhor prática de medicina veterinária quer no angulo do profissional, quer no angulo do animal e do seu tutor, no entanto, colocam–se grandes desafios ao nível do Centro de Atendimento Médico-Veterinário (CAMV), como:

– Necessária capacitação tecnológica para o armazenamento de dados;

 

– Familiarização tecnológica com os dispositivos;

– Incremento da literacia e das competências digitais da equipa médica e não médica;

 

– Garantia de proteção de dados e de privacidade dos tutores dos animais;

– Inclusão na equipa do CAMV de serviços ou colaboradores de áreas tecnológicas;

-Manutenção do médico veterinário como fonte primária de cuidados básicos em saúde animal, resistindo à tendência de os cuidados serem indicados pelo fornecedor técnico de serviços de comoditização do dispositivo;

– Participação ativa em questões de bem-estar animal através do acesso aos dados recolhidos na casa do tutor;

– Definição de protocolos de intervenção e acompanhamento em doenças de diagnóstico precoce;

– Disponibilidade virtual frequente de acompanhamento de pacientes monitorizados;

– Possível diminuição da área de hospitalização pelo acompanhamento de pacientes monitorizados à distância;

– Maior inclusão na tomada de decisões do tutor no modelo relacional de consulta entre médico veterinário e este, em que o médico veterinário passa para um modelo mais cooperativo e menos diretivo;

– Criação de novos modelos de monetização da atividade veterinária com a criação dos novos serviços tecnológicos.

Todos estes desafios levantarão necessariamente questões e pressões para uma revisão e adequação do código profissional e deontológico, assim como o estatuto, desde já a braços com contradições, por exemplo, na aplicação da telemedicina à atual prática veterinária.

Acredita-se que a “dispositivação” a todos os níveis, melhorará a produtividade individual, a eficiência das organizações, a qualidade da medicina veterinária refletindo-se em maior qualidade e tempo de vida dos animais, podendo facilitar um elevado potencial para combater o esgotamento profissional, permitindo uma maior satisfação em ser médico veterinário.

O futuro está aqui, na rampa de lançamento da massificação da “dispositivação”, e os CAMV que resistirem terão necessariamente de encontrar um nicho de clientes tão avessos à “dispositivação” como o próprio CAMV para poderem manter a porta aberta. No fim de contas, o que custará mais? O ato de resistência ou a adaptação às novas tecnologias de monitorização?

Banda sonora sugerida: BlakRoc – Álbum “BlakRoc”

https://music.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_k7WMrqAwQhNjenV4ztv7jG6tUOdBZhorI

Referências bibliográficas:

  1. https://www.marketwatch.com/press-release/pet-wearable-market-in-europe-to-showcase-around-19-cagr-till-2027-2022-06-06
  2. Byrne, Ceara & Logas, Jacob. (2021). The Future of Technology and Computers in Veterinary Medicine. 1002/9781119680642.ch26.

 

*Médico veterinário (drpedro.fabrica@gmail.com)

** Artigo publicado na edição 162, julho-agosto, da revista VETERINÁRIA ATUAL.

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